Durante muitos anos viajei de carro, de ônibus, de avião, de trem, ora sozinha, ora acompanhada de amigos. Até que me mudei de Belo Horizonte pra Brasília e conheci um grupo de ciclistas, o Dá Pedal, com quem quebrei todos os paradigmas: aos 48 anos de idade comecei a pedalar, treinando dentro das minhas limitações pra começar a fazer com eles viagens de bicicleta.

As duas principais aventuras desse período (Estrada Real e caminho de Santiago) aparecem no meu romance “Siga as setas amarelas – de bicicleta no caminho de Compostela”, cuja segunda edição sai agora, depois de muito tempo esgotado (momento merchand, o livro já está em pré-venda!). Mas foram muitas mais.

A primeira foi a Estrada Real, de Diamantina (MG) a Paraty (RJ) em 25 dias. Éramos seis ciclistas (Paulo, o saudoso Maninho, Rogério, Pena Filho, Zé Alcir, Nilo e eu) e uma motorista de apoio (Clarice, até Tiradentes, e Goia, dali até o destino final). De cerca de 1.200 quilômetros, não cheguei a andar nem 100. Não era ainda preparada, caí no terceiro dia e arrebentei o joelho, faltavam-me habilidade e preparo físico.

Com o passar do tempo, fui treinando semanalmente, aprendendo, caindo e levantando, me sentindo mais segura para enfrentar os desafios. Resumindo uma longa história, vou enumerar apenas as viagens de mais de um dia, ou seja, com parada em acampamentos, pousadas, hotéis, motorhomes. A maioria dessas vezes fomos com carro de apoio, mas cheguei a pedalar também em curtos trechos sem esse recurso.

Fizemos Compostela duas vezes: de Paris a Finis Terra (começando a pedalar em Lourdes, na França) e o caminho português, começando a pedalar em Cascais, colado em Lisboa. Dessas duas vezes, embora Goia conduzisse o motorhome, pedalei bem mais tempo, 40 quilômetros diários com os quais nunca havia sequer sonhado.

Na Europa, ainda fizemos uma linda e difícil viagem de Amsterdã a Paris – adoecemos no início e reduzimos o pedal propriamente à parte francesa, atravessando Holanda e Bélgica de trem e montando na bicicleta só quando já estávamos com a saúde melhorzinha.

No Brasil, cada trecho que pedalei deixou memórias incríveis de um país lindo, acolhedor, de culinária deliciosa e fiel em tudo à imagem do povo cordial que às vezes desaparece no horror dos descaminhos. Como viajantes de bicicleta, éramos bem tratados pelas pessoas, que nos davam informação, nos forneciam boas acomodações em pousadas, comida de primeira em qualquer estado que percorremos.

Além da Estrada Real, fizemos Salvador (BA) a Vitória (ES); Joinville (SC) a Florianópolis (SC); São José dos Pinhais (PR) a Garuva (SC); Santa Maria (RS) a São Borja (RS), pela região das Missões; de Brasília (DF) ao povoado Girassol (GO), sim, aquele cantinho lindo que ficou famoso durante os 20 dias da perseguição ao Lázaro; de Cavalcante (GO) a São Jorge (GO); de Venda Nova do Imigrante (ES) a Cariacica (ES); de Cariacica a Anchieta (ES). Outros trechos curtos por aí afora. Gláucio, Peninha, Ric, Tecris, Dona Anna, Cacá, Valdos, Vladimir, Leopoldo, André, além dos já citados, foram alguns dos amigos que nos acompanharam nessas aventuras.

Nem preciso repetir o que contei no livro sobre os ensinamentos que a bicicleta nos proporciona. Nem sobre as metáforas ambulantes – a principal, se a gente parar de pedalar, cai. Nem sobre o aprendizado de desprendimento e redução das necessidades e dos itens a carregar nos ombros, real ou metaforicamente.

Há casos que nunca contei, por falta de oportunidade. Vezes sem conta em que nos perdemos ou que perdemos algum amigo no caminho. Voltas, procuras, angústias, sustos, medos, exaustão.

Ouvindo o festival de escatologias que o noticiário fornece a partir do despresidente ora cagão, ora entupido, me lembrei de um momento marcante vivido por mim e pela Goia no caminho de Compostela. Paulo e Maninho haviam saído mais cedo de bicicleta pra levar o Cacá ao hospital, pois ele havia machucado o pé. Couberam à Goia e a mim as chatas tarefas de levar o motorhome a um ponto de apoio pra esvaziar a latrina, lavá-la e trocar os líquidos higiênicos. Isso era tarefa masculina diária, pois o galão que servia de reservatório para os nossos dejetos pesava bastante. Mas assumimos pelo já citado motivo de força maior.

Funciona assim: a chave do motorhome abre a porta de entrada da gente e o compartimento de onde tiramos o tal galão. Estaciona-se em cima de um bueiro por onde a água da lavação escoará. Num bueiro ao lado, despejamos o conteúdo da latrina. Fiz isso direitinho, mas, ato contínuo, impensadamente, joguei a chave do motorhome pra Goia, que estava do lado de lá. Mão mole, braços cansados do peso carregado, imprudência ou incompetência minha, tudo isso junto, a chave voou baixa e lentamente até cair certeira no buraco do esgoto.

Gritei de cá, a Goia gritou de lá. E agora? Não havia chave reserva. Os meninos, o Maninho e suas soluções miraculosas pra tudo, estavam longe. Dona do erro (poderia dizer cagada, mas soaria grosseiro demais), busquei correndo no carro um saco plástico, envolvi minha mão nele, prendi a respiração e enfiei o antebraço no bueiro. Com todo cuidado pra não correr o risco de jogar mais fundo o mais caro tesouro. Se Deus existe, ele teve compaixão de nós. A chave estava envolta em merda, mas logo ali ao meu alcance.

Respiramos aliviadas e fomos embora dali, ao encontro dos amigos. Não sem antes lavar e desinfectar chave, mãos, braços, a alma, no mais demorado banho que me lembro de ter tomado.

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