Graciliano Ramos, alagoano, morto em 1953, é meu escritor predileto. É o escritor que sempre releio e que marcou minha vida de maneira indelével. Adolescente, li “Vidas Secas”, publicado em 1938, e comecei a descobrir um Brasil que desconhecia. Morador da periferia de Belo Horizonte, a pobreza urbana era visível, estava ao meu alcance. O nordeste, com suas misérias e vidas secas, foi uma pancada na minha consciência. Fabiano, Sinhá Vitória, a cachorra Baleia e os meninos do casal, o mais novo e o mais velho, são personagens que revelam a secura humana, social e política do sertão brasileiro.
Segui lendo Graciliano, um homem sisudo, caladão, de escrita seca, objetiva e bela. “São Bernardo”, que reli na semana passada, com a saga do rude Paulo Honório, é outra beleza. “Angústia”, com a vida acanhada e atormentada de Luís da Silva, uma obra-prima. “Infância” traz o olhar do velho Graciliano para sua vida de menino, com retratos e momentos tocantes. E “Memórias do Cárcere” documenta um tempo de opressão e a trajetória do próprio Graciliano pelos cárceres da ditadura do Estado Novo. Destaco obras que considero centrais na minha formação pessoal e social. Recomendo também o relatório do prefeito Graciliano Ramos, minuciosa e irônica prestação de contas de sua gestão (1928) à frente da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios, Alagoas. Um documento que merece ser lido e ainda hoje é muito pertinente (disponível em www.revistadehistoria.com.br).
Graciliano alargou minha percepção do Brasil e da vida. Um exemplo marcante dessa presença é o capítulo “O Soldado Amarelo”, do livro “Vidas Secas”. Fabiano, vaqueiro e retirante, numa visita à cidade, foi preso e espancado por um soldado. Tempos depois, numa vereda, procurando uma égua, com o facão na mão para cortar o mato, Fabiano deu de frente com o soldado. Com o facão suspenso no ar, por poucos segundos, ele reflete sobre aquele momento. Podia descer o facão na cabeça do infeliz que o espancou. Podia se vingar, derrubar o soldado com um golpe. Fabiano pensa, remói o que passou, mas acaba se afastando e orientando o soldado. “Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. ‘Governo é governo’. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.”
Estudei Ciências Sociais. Comecei um mestrado de Ciência Política. Li vários livros sobre poder, dominação, autoritarismo, Estado e cidadania. O encontro de Fabiano com o soldado amarelo é a mais eloquente tradução da força opressora do Estado contra o cidadão, das relações de poder e subalternidade que marcam nossa sociedade. Muita gente ainda vive e pensa como o resignado Fabiano: “Governo é governo.”
Outro ponto rico da obra de Graciliano é o seu encontro feliz com o cinema. “Vidas Secas” (1963), com direção de Nelson Pereira dos Santos, é um marco do Cinema Novo. “São Bernardo” (1971), de Leon Hirszman, é um dos melhores filmes que já vi. O roteiro do próprio Leon, a música de Caetano Veloso e a atuação perfeita de Othon Bastos são memoráveis. Quando penso em Paulo Honório, o personagem central do romance, ele tem o rosto, o jeito e a voz de Othon Bastos, hoje com 91 anos e em cena com o monólogo “Não me entrego, não”. “Memórias do Cárcere” (1984), também de Nelson Pereira dos Santos, é outro filme marcante, com o ótimo Carlos Vereza interpretando Graciliano. Literatura e cinema, muitas vezes, têm encontros difíceis. Com a obra de Graciliano os encontros foram produtivos.
Graciliano é muito mais do que eu consigo apontar. Seus personagens são densos. Sua escrita não carrega gorduras. Suas reflexões são instigantes. O melhor é ler suas obras. Encerro com um pedacinho inicial de “Angústia”, tormentos do delirante Luís Silva: “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas, umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.”
A obra de Graciliano provoca deslocamentos, mexe com nossos paradigmas. Emociona e faz pensar. “Paz e prosperidade”, como Graciliano encerra seu relatório de prefeito.
Antônio Pimentel
1º/7/24
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