Não sei o que é mais difícil: enfrentar a morte inesperada, que chega de supetão e transtorna a vida da gente de cabeça pra baixo, misturando tudo, tristeza, revolta, raiva, saudade, perplexidade, medo, ou a morte lenta e gradual, determinada por uma ampulheta em câmera lenta, que consome gota a gota, grão a grão, a pessoa que a gente ama e vê ser devorada pela doença incurável, intratável, irrefreável. Tia Quiquica morreu ontem, levada pela lenta consumição da doença degenerativa. Muito antes, portanto, do desfecho, ela vinha dando adeus. Desde que deixou de nos conhecer, de se conhecer, de fazer contato, de estar consciente no mundo. Falta ela já fazia há muito tempo. Saudade dela já nos consumia dolorosamente. No entanto, ontem ela partiu e não há como não chorar sua morte.

Never more, never more, ecoa o corvo de Poe, a sentenciar o fim de uma vida tão especial e tão amada. Passei horas aqui no meu computador, procurando um texto que pensei ter escrito sobre ela. Não existia. Como assim, não existia? É que falo tanto nela, penso tanto nela, ela é referência tão presente, que jurava ter contado sua história, pelo menos em algum momento. De fato, ela inspira algumas das minhas personagens, e parte de suas histórias aparecem aqui e ali nos meus livros. No próximo, que ainda estou escrevendo, inclusive. Mas não, não havia uma crônica, um conto, sobre a Tia Quiquica.

Isso é quase impensável em se tratando de mim. Porque, embora ela não tenha tido filha mulher (que sobrevivesse), eu era a sobrinha que mais parecia com ela. Basta ver nas fotos. Sou a lata dela. Desde pequena. Uma vez, ainda criança, eu comentei:

– Todo mundo fala que eu sou a cara da Tia Quiquica!

Ela ficou com pena de mim, achou que eu não gostasse da comparação. Eu tive que lhe explicar que não era isso. Era só mesmo a constatação de que nossa semelhança não passava despercebida pra ninguém.

Como achar ruim? Ela era inteligentíssima! Divertida, engraçada, generosa, uma amiga que mantive enquanto conseguimos completar o diálogo. Apenas a demência interrompeu nossas longas conversas, nas quais tanto aprendi e tanto me enriqueci. Éramos tão amigas que, quando ela foi morar em Florianópolis e ficou sozinha cuidando do marido, o Tio Pimentel, com Alzheimer, fui pra lá algumas vezes ficar com ela. Quando ele morreu, os únicos que fomos ao velório e enterro fomos os filhos dela e eu. Depois do sepultamento, nos reunimos os cinco em volta da mesa e começamos a pôr a conversa em dia. Dos meninos, somente o Tony morava na mesma cidade que os pais. O João veio dos Estados Unidos, o China, de Brasília, e eu de Belo Horizonte.

Foi uma noite de reencontro de mãe e filhos. Eu, tinha hora, me sentia invasora. Mas não era. Ela estava feliz com a minha presença. Contávamos casos e ríamos, num misto de alívio que ela sentia depois de tantos anos cuidando de um doente tão tristemente pesado, como é a pessoa com Alzheimer, e alegria por ter seus “filhinhos” em volta, pela primeira vez todos, após tantos anos de separação. Lá pelas tantas, às gargalhadas – uma característica sua inesquecível –, ela se deu conta de que poderia se tornar um escândalo para a vizinhança:

– Vão me chamar de viúva alegre! Kkkkkkkkkkkkk.

Antes disso estivemos juntas, também em Floripa, para o casamento do Tony. Cheguei no dia do casório. Fui encontrá-la no salão de beleza, mãe do noivo se preparando. Só que, ao chegar lá, me deparo com seu pé inchadíssimo. Ela tinha caído a caminho do salão e não conseguia nem pisar no chão. Foi uma novela convencê-la a ir ao pronto-socorro verificar o que havia acontecido. Tinha quebrado. Outros extensos capítulos de toda uma tarde para conseguir atendimento e engessar o pé, sempre levadas de carro pelo noivo, que quase perde a hora de entrar na igreja. Ao final, deu tudo certo e ela compareceu – de muleta.

Falei em inchadíssimo e me lembrei de outra de suas características: era exagerada ao extremo. Pra zoar, atribuíamos a ela a seguinte frase:

– Já disse um trilhão de vezes que não sou exagerada.

É porque ela era assim. Over! Gostava de rir às bandeiras despregadas. Histriônica, contava como ninguém o caso de uma mulher que ficava presa no banheiro do avião e, durante uma turbulência, a porta se abriu e ela passou a atravessar o corredor da aeronave curvada, com as pernas presas pela calça abaixada até os joelhos, bunda de fora pra lá e pra cá, em exibição para as vistas dos demais passageiros. Não contava, simplesmente. Encenava a tragicomédia da mulher com a bunda de fora.

Sobre bunda, uma de suas máximas era contra as cirurgias plásticas:

– Não adianta. Se você tira o peitame, aparece o bundame. Se diminui o bundame, sobressai o pername. Não tem jeito!

Fazia também um número de canto e dança meio erótica, simulando uma dança do ventre caricatural, impagável.

Tia Quiquica e a filosofia para ensinar as empregadas a guardar as coisas nas prateleiras e gavetas:

– O que você usa sempre, guarde perto, à mão. Se usa de vez em quando, guarde no meio do caminho. O que você quase nunca usa, aí pode guardar lá no fundo, lá em cima, fora do alcance.

Gostava de ensinar as pessoas a pensar, a raciocinar, a dar sentido às coisas. Não vou me lembrar agora, mas tinha método pra tudo, desde os gestos comezinhos do dia a dia, como a arrumação da casa, a lavação de louça e roupa, até as grandes decisões da vida. Não foi à toa que investiu em sua formação, visando sempre o crescimento profissional. Aprimorou seu inglês pra ser melhor secretária, profissão que exerceu até se aposentar. Era organizadíssima, caprichosíssima, não havia secretária melhor, desde o início da carreira na Cemig, em BH, depois no Rio de Janeiro e por fim em Brasília. Bilíngue, conseguiu arrumar empregos melhores. O último deles, na ONU, onde não teria ido parar se não fosse competente como era.

Capricho e ordem a faziam dar banhos homéricos nos três filhos, esfregar-lhes bucha e sabão até quase arranhar a pele. Ministrar-lhes vitaminas e cuidados preventivos para que não ficassem baixinhos como ela. Ensiná-los a cuidar do corpo e da alma com esmero tal que todos herdaram dela a fé católica inquebrantável, a dedicação militante à Igreja, a devoção profunda e verdadeira que pautou sua vida.

Tia Quiquica nasceu Maria Francisca em Itabirito. Viveu em Caratinga, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brasília, Florianópolis, Toledo, rodou por aí. Passeei com ela por BH à procura de um apartamentinho pra onde ela pudesse se mudar após a morte do companheiro, mas ela acabou se decidindo por ficar perto do filho, em Santa Catarina. Nossos últimos encontros foram aqui, em Brasília, onde ela vinha de vez em quando visitar filho e netos.

Em 2010, participamos juntas do encontro dos 50 anos da turma do Pererê. Ela, amiga de infância do Ziraldo, era personagem da turma, junto com o marido. Quiquica e Pimentel formavam o casal de passarinhos amigos de Tininim, Tuiuiú, Pererê, Allan, Moacir, Pedro Vieira, Geraldinho. No meio da festa, Ziraldo veio dar-lhe um selinho, ela o despachou:

– Sai pra lá, Ziraldo, que negócio é esse de me beijar na boca?

– É selinho, Quica, todo mundo dá. Até a Hebe!

– E eu lá sou Hebe Camargo? Me respeita que eu não sou dessas!

Baixinha invocada, não levava desaforo pra casa, mas isso não queria dizer que fosse mal-educada ou grosseira. Era boa de briga, mas no sentido da luta pela justiça, pela decência, pelo direito. Feminista avant la lettre, sofreu para se impor numa sociedade e num tempo extremamente machistas e repressores. Sobre isso, escreveu um livro de centenas de páginas, que várias vezes me mostrou, sem me deixar ler.

Ando atrás do livro da Tia Quiquica há um bom tempo. Quero lê-lo e editá-lo, se os filhos me autorizarem e, claro, se nada houver nele que pudesse constrangê-la em vida.

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