Durval Ângelo Andrade

Um poema encantado: este também poderia ser o título do livro “A piracema da iara”, de Márcio Metzker, lançado pela Outubro Edições. É uma obra poética, mágica e provocativa, que sutilmente nos conduz por reflexões profundas sobre como a sociedade contemporânea tem “ferido de morte” a nossa “Mãe Terra”, os nossos povos originários, o povo empobrecido e oprimido. Grande jornalista, Márcio Metzker tem provado que é também um escritor de muito talento. E com uma boa dose de ousadia. Afinal, tem a coragem de se aventurar pelo “realismo fantástico” para tratar de temas tão concretos, arriscando-se em um estilo que grandes mestres, como Saramago, Jorge Luis Borges e Chico Buarque, tão bem desenvolveram.

Na dedicatória que me fez, ao autografar o livro, Márcio já dá indícios dessa ousadia estilística: “Amigo Durval, aqui vai mais um coquetel de realidades entremeadas de fantasia. Espero que se identifique com ambas.” O texto revela muito do Márcio brilhante e engajado que conhecemos. De forma profunda, ele se debruça sobre uma realidade de devastação ambiental e levanta a bandeira da causa ecológica, em especial, da defesa do nosso Velho Chico, revisitando as muitas realidades que interagem com o rio.

É assim que nos fala do povo indígena Xacriabá e de toda a beleza dos modos de vida dos barranqueiros do Rio São Francisco. E trata de temas tão densos em uma linguagem encantada, que revela a sua imensa capacidade criativa e literária. Sim, eu me identifiquei. E não podia ser diferente. Márcio me pediu autorização para que um dos protagonistas fosse Frei Durval. O personagem – um frade, leigo, franciscano – foge do seminário para viver a realidade do povo e o compromisso com os mais pobres e esquecidos da sociedade. E se embrenha por nossas matas, margeando o rio, onde se encontra com o canto da iara.

Equilibrando-se entre a fantasia e o real, ele une um personagem da religião oficial a outro, do folclore brasileiro. E tempera tudo com porções generosas de denúncia social, em uma maravilhosa espiral de sensibilidade humana e compreensão da vida do povo e da sua luta pela sobrevivência. Apesar da inspiração em minha trajetória – em nossa luta pelos Direitos Humanos –, após ler o livro constatei: Frei Durval é, na verdade, o alter ego do autor. Sobretudo, “A Piracema da iara” é uma expressão do compromisso que ele sempre teve, como jornalista, com as lutas pelos Direitos Humanos, principalmente os direitos ambientais.

Márcio Metzker fez inúmeras coberturas dessas lutas quando, como deputado, eu respondia pela presidência da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Lembro-me especialmente de suas reportagens sobre a realidade dos índios Xacriabá, das comunidades quilombolas, dos barranqueiros e dos geraiseiros. Por sinal, também estivemos juntos no Nordeste, acompanhando a luta em defesa do Velho Chico protagonizada por Dom Luís Cappio, outro personagem emblemático do livro.

O escritor norte-americano Paul Auster tinha razão: a literatura “é o único lugar, no mundo, onde dois estranhos podem se encontrar em absoluta intimidade”. Se Frei Durval é a expressão do compromisso e da militância do autor em defesa da vida, o canto da iara representa o encanto dessa luta: o despertar de um mundo mágico que está bem perto de nós. Parabéns, Márcio! Você acertou na veia.

Durval Ângelo Andrade é professor, escritor, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, conselheiro e atual vice-presidente do Tribunal de Contas de Minas Gerais.

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