Marcos Fabrício Lopes da Silva

O milharal está para o livro assim com os sonhos estão para os poemas. Arte e vida. Literatura e vida. A esses dois pares de palavras que atravessam o horizonte de Milharal de sonhos (Outubro Edições, 2021), Maria do Carmo Pereira Coelho acrescenta um terceiro: escrita e vida. Se a moral está para os deveres ali onde a ética está para a busca de uma vida que vale a pena ser vivida, Coelho se propõe indagar o vigor do campo do sensível no século XXI – escapando, de um lado, a supervalorizações hoje ingênuas da arte, mas rechaçando, de outro, o “sem sentido” do mundo a nós legado pela modernidade.

Assim pensa-se não a partir do que se é, mas a partir do que se pode; não segundo valores, mas segundo potências. O compromisso com a prática escritural, nesse sentido, apresenta-se como expressão perfeita daquilo a que se pode chamar “vida artística”: campo informe que a tudo processa, ato intensivo e anti-hierárquico a fazer de nosso “mundo próprio” território aberto à experiência e à resistência. Resistir: levar a vida a seus limites. Conquanto o ofício do escritor compreenda muitos aspectos, dois deles são fundamentais: o de captar a realidade e o de transpor a realidade para a literatura. Todas as criaturas humanas executam o primeiro, e a acumulação de conhecimentos que decorre do esforço cotidiano para captar a realidade resulta em experiência. Só o artista, entretanto, executa o segundo, e o escritor o executa trabalhando com a língua, isto é, com um instrumento que utiliza palavras, segundo normas e regras específicas.

É bastante provável que os primeiros versos tenham brotado da boca de um apaixonado, jamais saberemos. A verdade incontornável é que o amor é tema recorrente entre os poetas e alvo de interesse constante entre os leitores. “Importa é o amor, botão apenas entreaberto,/ que ilumina o degredo e perfuma o deserto!”. A realidade apresenta-se, entretanto, sob infinitas formas, multiplicando ao infinito os seus detalhes, aparentemente descoordenados. Essa riqueza imensa de fenômenos e de imagens chega ao homem através dos sentidos. “Hoje aprendi que sábio/ é aquele que joga sua dor/ não num copo com água,/ mas num lago./ E, para não pirar,/ joguei a minha no Lago Paranoá”.

Pela natureza mesma de seu ofício, o escritor é o homem que vive atento ao espetáculo da vida. Faz-se assim a mais preciosa testemunha desse espetáculo. Opera no duplo sentido da palavra “testemunha”: aquele que assiste, mas também aquele que depõe sobre o que assiste. “O homem da mão de onça/ andava pela minha cidade./ Hoje anda dentro de minha alma!/ Dentro de mim cata minhas emoções./ Meus sentimentos./ Meu sentir./ Meu tormento./ Do pátio de casa,/ eu o vejo./ Ele existe./ Ainda não morreu./ É evidente que não estou louca./ Aquela mão grande e torta/ para o lado de fora do braço/ é só um detalhe imperfeito./ Talvez seja a expansão do meu sofrimento/ em não poder guiá-la/ no exato momento da encruzilhada./ Era um bicho-homem?/ Homem-bicho?/ Não sei./ Homem com mão de onça!/ Que forma estranha!/ Talvez mais onça que homem./ Uma onça que sorri./ Onça que começou a se formar pela mão?/ Pela pata?/ Todos os pelos dele são visíveis./ Longe dele qualquer navalha./ Suprema inocência no centro do meu mundo./ Me olhava alto./ Eu criança me interessava por sua vida./ Eterna onça do passado/ Todos somos efêmeros./ Eu, tu e ele que hoje insiste em emergir,/ sair, gritar e correr/ atrás de quem deseja eternizá-lo”.

Estamos diante de uma escritora que alcançara as alturas mais escarpadas da estética e mergulhara nos abismos mais inexplorados do intelecto humano, aquela que, através de uma vida que se assemelha a uma tempestade sem calmaria, encontrara recursos novos, procedimentos desconhecidos para assombrar a imaginação, para seduzir os espíritos sedentos pelo Belo. Identificamos na poética fantástica de Maria do Carmo Pereira Coelho o simulacro de realidade, o simulacro de sobrerrealidade e a dicotomia irônica: “Vês! Ninguém assistiu ao enterro/ do entusiasmo,/ da alegria,/ da felicidade,/ do fim do elo,/ do anelo daquilo./ Matar o entusiasmo assim é um crime./ No lugar daquela morte,/ o que ficou?/ Ficou o crescimento desmedido da cobiça de furtar./ Nesse espaço de ambição moram feras/ e o perigo é virarmos uma delas também”.

É impossível compreender a poesia em nosso tempo se não privilegiarmos as emoções, os afetos compartilhados e os imaginários. O homem representado na forma artística deve ser a expressão do caráter universal de uma parte do mundo humano e, ao mesmo tempo, de um homem concreto, pleno, individual. Literatura é uma arte que, utilizando palavras, visa interpretar a realidade de forma compreensível à generalidade dos homens. “Estou farta da indiferença dos que lideram,/ da liderança bem gelada e morta,/ da liderança dos que podem matar o ideal/ de um bom trabalho educacional./ Abaixo os medíocres!/ Que só se preocupam com o poder,/ que nada aprendem durante o tempo/ em que esbanjam emplumação,/ que não acolhem,/ que fazem tudo para plantar a intriga,/ que semeiam o novo destruindo o que encontram pela frente./ Quero antes de tudo lideranças de verdade,/ que reconheçam os valores,/ que promovam o pagamento justo do trabalho,/ que reconheçam e elogiem os que cumprem bem/ a tarefa que lhes é solicitada./ Não quero mais saber da cegueira dos que lideram”.

Muito se aproxima a literatura da arte que utiliza criativamente o espaço social das ideias. Só existe arte pelo apreço e pela compreensão de muitos. A arte é, evidentemente, a expressão da beleza, da ânsia humana pela perfeição, inclusive pela perfeição das formas. Mas, lendo Milharal de sonhos, a beleza está por toda a parte e está particularmente nos dilemas humanos. Por isso, como diz a poeta Maria do Carmo Pereira Coelho: “atualmente, o papel de que mais gosto/ é ‘ponhar grandeza’ na mão/ de um aprendiz da escrita da vida”.

* Doutor e mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/ UFMG). Poeta, professor autônomo e pesquisador independente. Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

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