Passei uns dias sem falar no Moacir, mas não tenho como não voltar a ele. Afinal, foram dois anos seguidos, mais de dez países, um mês inteiro a cada turnê dessas. Um episódio especial que nos aconteceu na primeira viagem começou em BH, quando fiquei conhecendo, por intermédio do Luca e da Rô, uma moça suíça chamada Régula. Ela estava no Brasil fazendo trabalhos sociais e, vindo do Sul, parou em BH e se hospedou com meu irmão e minha cunhada. Conversamos muito, contei-lhe da coincidência de estar com passagem marcada para a Europa, com um amigo, e com direito a rumar pra qualquer ponto cardeal que nos desse na telha. Ela, num português bem aprendido, mas cheio de sotaque, nem titubeou:

– Pois você e seu amigo vão à Suíça e serão meus hóspedes.

Sem ter por que recusar, aceitamos. De modo que, depois de aterrissar em Barcelona, percorrer o Sul da Espanha e o Sul da França e cruzar a Itália de oeste a leste, subimos no trem rumo ao cantão de Argau, onde ela morava na pequena Aarau. Já chegamos rindo, porque o trem atrasou cinco minutos! Num país conhecido pelos queijos, pelos relógios, pelo sigilo bancário e pela pontualidade, era um fato inédito.

A Régula nos recebeu na estação e nos levou de carro para a cidadezinha. A primeira vista do lugar já nos impressionava pela beleza dos campos, mas sobretudo pela organização do trânsito e pela perfeição do asfalto. Ao ouvir meu comentário a esse respeito, a Régula, do alto de sua consciência política recém-adquirida no trabalho em favelas brasileiras, respondeu de bate-pronto:

– Não é terrível, isso? Não tem um buraco, não tem uma obra! Se algo acontece na rodovia, imediatamente o pessoal da manutenção corre pra arrumar. Com tanto problema mais grave no mundo! É um horror!

Moacir e eu ríamos da queixa da amiga. Mas as realidades eram, de fato, extremamente diferentes. Na cidade delas, por exemplo, com pouco mais de 2 mil habitantes, ela nos levou pra conhecer o prefeito, que era o homem mais rico do lugar e tinha, adivinhem, quantas cabeças de gado? Duas! E trabalhava ali na sua chacrinha, ordenhando, pastoreando seu “rebanho”.

A Régula morava com a mãe e o pai numa casa de dois andares, toda aquecida, porque o inverno ali é de lascar. Não fomos em tempo de frio, mas mesmo assim ela me emprestou, pra dormir, um cobertor elétrico – primeira e única vez em que experimentei esse luxo. E adorei. O Argau, ou Argóvia, em português, é um cantão de língua alemã, mas a família falava em dialeto suíço. Era difícil, mas pelas entonações a gente entendia boa parte dos diálogos, como quando a filha quis nos levar pra comprar chocolate e o pai a criticou, insinuando que aquilo era interesse mais dela do que nosso. Injustiça com a moça.

Nos serviram comidas típicas do dia a dia, com muita batata no cardápio, maçã, folhas. Nos levaram a uma festa da escola da cidade, onde o tom de pele escuro do Moacir fez o maior sucesso junto às branquelas amigas da Régula. Faziam fila pra vir nos conhecer, mas passavam longe de mim e só queriam chegar perto do brasileiro “exótico”, corando e dando risinhos. Pra elas, era tudo novidade. A festa em si não diferenciava em nada de uma comemoração de encerramento de semestre em qualquer cidade do Brasil: talentos do colégio, bandas de cover, danças típicas, refrigerante e tira-gostos prosaicos.

No outro dia a mãe da Régula pegou o carro e nos levou pra dar uma volta pelo país. Queria nos mostrar o alto de uma montanha que permanecia nevada também no verão e na primavera. De lá, vimos o enorme lago que tínhamos contornado alguns minutos antes e, ao lado, camadas e mais camadas de morros mais baixos, num mar de campos, plantações, paisagem em tons de verde de tirar o fôlego (nós quatro na foto).

Por fim, demos uma passada por Zurique (onde eu voltaria em 1998 pra encontrar a Mércia, em outra aventura que ainda devo contar por aqui). Estava nos noticiários o parque da cidade onde era permitido consumir qualquer droga livremente, então a jovem senhora nos levou pra conhecer o local. Triste e chocante ver as turmas de zumbis trançando pra lá e pra cá sem ninguém os perturbar, num cenário futuramente reeditado nas cracolândias mundo afora.

Passeamos ainda, em outro dia, por Basel (Basileia, em português), onde conhecemos aquelas lindas pontes fechadas iguais às daquele filme “As pontes de Madison”, compramos chocolates pra nós, pra Régula e pra trazer pro Brasil, fizemos amigos, vimos um país lindo, sem latifúndio, onde tudo dá certo e o maior problema, pruma jovem que quer mudar o mundo, é o excesso de zelo com as estradas, quando tanta gente passa fome nos países pobres.

Nosso último destino suíço foi um centro de peregrinação do qual nunca ouvira falar: o vilarejo de Eisiedeln, no coração do país, terra do famoso Paracelso, alquimista considerado o pai da farmácia. Lá existe uma abadia beneditina de mais de mil anos, gigantesca, opulenta, onde já aconteceu de tudo.

Para os peregrinos cristãos, a história mais impressionante foi a de um incêndio ocorrido séculos atrás. Após a destruição quase total da igreja, encontraram em meio aos escombros, intacta, uma imagem de Nossa Senhora. A única ação sofrida foi a da fuligem sobre a face da santa, que passou a ser chamada de Madona Negra ou Black Madonna. Como não podia deixar de ser, ajudei a alimentar a imensa coleção de Nossas Senhoras da minha Tia Mana, trazendo pra ela uma imagem da Black Madonna de Eisiedeln.

A Régula foi uma amiga que nunca mais vi e de quem nunca me esqueci. Ela e suas respostas. Ao me ver estupefata diante da opulência das artes barrocas em toneladas de ouro por toda a nave da igreja de Eisiedeln, ajoelhou-se ao meu lado. Eu mais comentei do que perguntei:

– Régula, quanta riqueza! Quanta beleza! Eu não sabia que vocês tinham tanto ouro!

E ela:

– Nós, não. Vocês é que tinham.

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