Esta semana, com toda razão, só se fala em Milton Nascimento. Não fui ao último show, estava dentro de um avião na hora. Nem mesmo a transmissão pela TV pude ver ao vivo – só depois. Mas não senti tanto estar ausente nesse momento tão importante da música popular brasileira, da cultura brasileira, da música do mundo. Isso porque passei a vida indo a shows do Bituca, iria a quantos pudesse, mas já vinha sofrendo com seus problemas de voz e locomoção, me dispensei de uma sessão de lágrimas inesgotáveis.
Na primeira adolescência, ouvia basicamente Beatles e aquelas músicas de novela, pop americano do início dos anos 1970, um som que, admito, me toca até hoje. Um dia, Luca e eu pedimos ao nosso irmão Zenriques, mais conhecido como Tostão, que nos desse um disco desses, tipo America, Bread ou Gilbert O’Sullivan. Ele, com aquele jeitinho todo seu, nos respondeu peremptoriamente:
– Essas porcarias eu não dou, não. Vocês têm que gostar é de Milton Nascimento.
Aquilo não me dizia nada. Pensei em Miltinho e seu bigode, nada a ver. Aí, em 1975, entrei pro Colégio Estadual Central e conheci o Fio e o Petrônio, que nos trouxeram o Roy e sua família (Newtão, Cláudia, Regina, Valéria), a Carmo, a turma da Sagrada Família. E nos trouxeram violões, noites de música, “San Vicente”, “Clube da Esquina”, e daí em diante nada será como antes.
Os primeiros discos lançados naquele momento foram “Minas” e “Gerais”. Paixões fulminantes. Fomos aos shows. O primeiro de que me lembro, posso estar sendo traída pela memória por causa do depoimento que dei aqui outro dia sobre os Doces Bárbaros, também foi no Mackenzie, em dezembro de 1975. Meu pai tinha me dado um relógio. No empurra-empurra pra entrar no ginásio, a linda peça desgarrou-se do meu pulso e eu a perdi. Já lá dentro, ganhei um maravilhoso presente de Natal: o show de fim de ano do pessoal do Clube da Esquina, que se tornou uma tradição nos anos seguintes.
Com Milton vieram Lô, Marcinho, Beto, Tavinho, Toninho, Tavito, Robertinho, Fernando, Ronaldo, uma multidão de artistas que passaram a fazer parte da família. Fui aos poucos comprando os discos anteriores, e ao mesmo tempo os lançamentos de cada temporada. Acho que hoje tenho todos. Até “Courage”, o primeiro, que saiu antes nos EUA e depois no Brasil. Até aquele com Wayne Shorter, o outro com Belmondo…
Fui a incontáveis shows. Com os Meninos de Araçuaí e o Ponto de Partida. Com Gil. Em teatros, ginásios, na Praça do Papa, na Serraria Souza Cruz, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, no Açougue Cultural T-Bone, nos bailes da vida. Uma vez levei o Luca, que andava cismado que o Milton havia perdido o élan, pra ver uma apoteose de emoção e beleza no Sesiminas. Não perdera nada. Era a mesma potência, a mesma força da natureza que nos houvera mudado a vida décadas antes. Choramos juntos – de alegria.
Curioso é que, enquanto repórter de cultura, entrevistei dezenas de astros e estrelas, mas nunca o Bituca. Nunca estive com ele frente a frente. Vivi duas situações esdrúxulas. A primeira, quando ele adoeceu de diabetes e foi internado na Clínica São Vicente, no Rio. O jornal me mandou pra lá, pra cobrir, meio que achando que ele fosse morrer. Graças aos céus nada aconteceu, a não ser que eu e o repórter do concorrente ficamos os dois feito dois manés na porta do hospital dia e noite, até que combinamos de ir embora juntos, pois enquanto um estivesse ali o outro não poderia sair.
A segunda se deu no aeroporto de Confins há uns quatro ou cinco anos. Pela primeira vez na vida estive frente a frente com Milton Nascimento. Quase trombamos um no outro na saída do terminal. Meu susto e minha emoção foram tão grandes que parei em frente a ele e disse sem pensar:
– Meu Deus! Bituca! Eu te amo! Posso te dar um beijo?
Ele, totalmente sem graça, deixou com um meneio discreto de cabeça. Sapequei-lhe o beijo na bochecha e repeti, sem outras palavras:
– Eu te amo.
Saí dali andando nas nuvens. Ainda bem que nunca o entrevistei como profissional, pois creio que passaria vexame. Esse homem é muito maior do que tudo que possamos dizer dele. Sua música, sua voz (“a voz de Deus”, na definição certeira de Elis), sua batida, seus acordes e harmonias, sua veia poética, a ancestralidade que traz em cada fibra, os pés fincados na terra, as antenas captando e transmitindo para o mundo. Um artista maiúsculo que temos o privilégio de acompanhar ao longo da vida. Vida longa, Milton Bituca Nascimento!
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