Não, não vou me arrogar a fazer análises sobre os resultados da eleição de ontem. Quem sou eu? Além do mais, a tristeza que se abateu sobre mim não se consola com os diversos alentos recebidos dos grupos incumbidos de não nos deixar perder a fé, não nos deixar esmorecer justamente na hora que precisamos renovar as forças e manter acesa a chama da resistência.

Todos sabem que estou falando do segundo turno entre Lula e o capiroto no dia 30. Mas não foram os números para presidente que me abalaram. Foi a consolidação do fascismo no Brasil de maneira inequívoca. A eleição de tipos como o que quase destruiu a saúde quando ministro da pasta, o que passou a boiada na destruição do meio ambiente quando responsável pela defesa das nossas matas, a que agiu na contramão dos direitos humanos enquanto respondia pelo cuidado deles sob sua gestão, e uma infinidade de outros menos conhecidos, mas igualmente desqualificados, comprovadamente inimigos do povo, pessoas sem espírito público, sem história ao lado dos pobres, pelo contrário, notórios porta-vozes do autoritarismo, negacionistas da ciência e da democracia.

Então, quando chego à conclusão de que quase metade da nossa população é composta por fascistas, não quero ofender ninguém. Tenho gente amada, na família e fora dela, que está nessa desde o pleito passado. Outros muito antes. São anticomunistas, creem que vale tudo para derrotar o capiroto que vêm em nós, da esquerda. Sejamos ou não comunistas.

Meu primo Zé argumenta que nem todo mundo que vota no traste é fascista. Muitos são gente boa, que só pensa diferente de mim. Claro que tem muita gente boa. Mas essa gente boa não vê o capiroto defender abertamente a tortura, a extinção de adversários políticos, a violência como arma de defesa de seus ideais? Ou pra eles isso se desculpa porque, afinal, é ele que vai nos livrar do comunismo? Essa gente boa concorda com ele quando pesa preto em arroba, como se fosse gado? Concorda em atropelar pobre pra reduzir as despesas do Estado (isso não foi dito pelo inominável, mas por um seguidor dele, claramente inspirado no “mito”)? Essa gente boa concorda em desprezar a vida, em rir do sofrimento alheio, em ensinar as crianças a mangar de deficientes físicos? Também prefere que seu filho morra a ser gay? Também acha que tem mulher que merece ser estuprada e mulher que não merece, de tão feia que é? Vejam que não estou inventando acusações contra o traste. São todas frases dele, ditas sem culpa nem vergonha.

Ou vale tudo pra derrotar os vermelhos, os socialistas?

A pauta de costumes, que parece unir a extrema direita dos tempos da TPF aos evangélicos do momento, não inclui a falta de compostura desse homem abjeto, que puxa coro no comício para louvar sua própria ereção? Ou não passa do velho moralismo hipócrita, que prega a decência da porta pra dentro e a cafajestagem por debaixo dos panos – exceto pro seu mito, claro, cuja cafajestagem é motivo de orgulho pra ele e todos que o cercam.

A pauta de costumes dá licença para exploradores da boa-fé da massa, pastores milionários, que não se pejam de embolsar os parcos recursos do aluguel surrupiado na mão grande junto ao rebanho embevecido?

Recorro a Hannah Arendt e ao conceito da banalidade do mal, que ela cunhou pra tentar entender aquelas pessoas de bem que aderiram ao nazismo e supostamente não percebiam que estavam praticando a ignomínia ao perseguir, espoliar, torturar, exterminar. Cumpriam ordens, seguiam a manada. Pois, no fundo, achavam mesmo que judeus, gays, deficientes, ciganos, etc. etc., eram gente inferior, sem utilidade pra sociedade elevada que acreditavam estar construindo.

Assim vejo meu cabeleireiro bolsonarista, simpático, bom profissional, que festejou a execução de um bandido em Goiás, no ano passado, e só lamentou que Lula e Dilma ainda não tivessem tido o mesmo fim. Assim minhas colegas de hidroginástica, que festejam a eleição daquela mulher que parece bruxa de contos de fadas. Ou aquela vizinha que ouvi falar, durante a pandemia, que sim, estava morrendo muita gente, mas que era gente que estava mesmo precisando morrer.

Já falei demais e não cheguei ainda ao ponto que quero: com atraso de alguns anos, estou assistindo à série “O conto da aia”, baseada nos livros da escritora canadense Margareth Atwood. Trata-se de uma distopia em que, num futuro próximo, uma seita de cristãos fundamentalistas toma o poder em parte dos Estados Unidos e implanta um regime em que as mulheres não têm poder de voz. Pertencem aos homens. Numa sociedade que enforca traidores, pecadores, gays e muçulmanos.

Nessa sociedade em declínio populacional devido à esterilidade que atinge a maior parte da população, existem quatro tipos de mulheres: as esposas, estéreis, que obedecem cegamente aos maridos; as aias, férteis, que pertencem ao casal que deseja ter filhos e são estupradas pelos homens com a ajuda das esposas; as Marthas, empregadas domésticas também escravizadas; e as putas, que servem àqueles santarrões de meia tigela em bordéis onde vale tudo.

A ironia está em que mesmo uma mulher inteligente, brilhante escritora, que foi uma das ideólogas do regime, tem que se submeter à nova ordem. Que inclui ter um dedo amputado se cometer o pecado de ler. Sim, porque livro e leitura são perigosos e só ao sexo masculino é dado esse direito. Uma das vilãs da história, uma “tia” que educa, tortura e mutila as jovens destinadas a ser aias, me lembra certa futura senadora.

As aias que dão título à história são condenadas a ser estupradas por quantos homens for necessário para atender aos interesses do Estado cristão – numa cerimônia inspirada na passagem bíblica de Jacó e Raquel, que têm filhos por intermédio da aia Bila.

Moralismo, hipocrisia, violência, tudo em nome de Deus, da religião, da verdade absoluta, do anticomunismo, essa terrível ameaça à civilização. Ai de nós, Brasil, que caminhamos sorrindo em direção ao inferno.

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