Escrever crônicas da Copa e ao mesmo tempo trabalhar nos projetos profissionais te coloca sempre no risco de ter tempo pra falar abobrinha e se ver no maior turbilhão de demandas justamente no dia do jogo do Brasil. Aconteceu comigo. Mais de 24 horas depois do show do Pombo, ainda não encontrei jeito de escrever sobre ontem – na verdade, nem sobre hoje. Foram dois dias da boa e velha correria, que incluiu horas no atendimento bancário, fila nos correios, carregar peso do supermercado, tomar um temporal e lavar a roupa e o tênis encharcados de lama.

Mas vamos ao que interessa: no meio da confusão de ontem, consegui ao menos assistir ao jogo. E que jogaço! Concordo com os analistas que viram na seleção consistência pra disputar o título pelo menos com Espanha e França. Holanda e Bélgica não me empolgaram. O empate da Inglaterra com os Estados Unidos hoje desfez um pouco da imagem promissora anunciada pela goleada na primeira rodada. E as derrotas de Alemanha e Argentina nas zebras mais festejadas do Mundial afunilaram bastante o time dos favoritos ao caneco.

Sobre a partida contra a Sérvia, muito está sendo festejado o Richarlison. A esquerda saudando o brilho de um jogador que, além de tudo, tem consciência social e política. Os memes associam até o voleio no segundo gol com o L de Lula. Já quem só se importa com futebol vê no artilheiro um centroavante de talento e oportunismo, a ocupar uma vaga que penou à procura de um merecedor da camisa que vestiu Ronaldo, Romário e poucos outros.

E há também os contrários a misturar futebol com política, como se fosse possível desatrelar as duas coisas. Como se a Fifa não fosse um poço de política e suas realizações, consequências de decisões, negociações, interesses de países, governos, pessoas e outros “players” do mundo do “business”. Já li e estudei o suficiente pra entender que somente uma política bem urdida consegue conciliar, na mesma edição da Copa do Mundo de Futebol, um país fechado e retrógrado como o Catar e as lutas contra o racismo e a homofobia e em defesa dos direitos humanos.

Como fazer vista grossa pras lágrimas copiosas dos iranianos durante a execução de seu hino nacional? As camisetas em defesa da causa das mulheres nos países islâmicos, alguns que não permitem que estudem, o que dirá frequentar um estádio de futebol? O protesto de alemães, mãos na boca, acusando o silenciamento imposto pela Fifa até na braçadeira de capitão? As manifestações, dentro e fora dos gramados, em defesa dos trabalhadores explorados e de tantas outras causas?

Não querer que os jogadores brasileiros se manifestem parece coisa da famigerada “escola sem partido”, inventada pela extrema direita no Brasil pra calar posicionamentos de esquerda ou progressistas, laicos, liberalizantes. Sem partido, mas com igreja. Sem partido de um lado, mas ocupada por representantes de uma ideologia única, antiquada, anticientífica, antediluviana, de outro.

Assim é com a seleção: enquanto os craques apoiarem governos de direita ou conservadores, tudo bem. Problema é quando começam a se pronunciar em defesa do povo, dos oprimidos e explorados. Aí é enfiar política onde não deve. Deve sim, penso eu. Precisa!

Richarlison é nome raro e caro. Além desse incrível Pombo, capixaba saído da base do América-MG que se interessa por política, faz golaços de voleio em treino e jogo e “speak English”, tem também o ex-jogador seu homônimo, primeiro futebolista a se assumir gay e defender a causa LGBTQIA+. Hoje comentarista na Globo, Richarlyson foi campeão da Libertadores e da Copa do Brasil pelo Galo em 2013 e 2014, respectivamente. O xará sem ípsilon voou mais longe. É esperança de taça, título, gols, alegrias e orgulho da nossa amarelinha, tão vilipendiada pelos sequestradores políticos nos últimos anos.

Texto publicado originalmente no projeto Crônicas da Copa – www.cronicasdacopa.com.br

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