Lendo a maravilhosa entrevista do escritor argentino Alberto Manguel sobre Lisboa, uma frase dita por ele me lembrou de outro assunto conversado esta semana, sobre meu primeiro namorado. Manguel descrê do mito de que o primeiro amor define a nossa relação com o mundo. Segundo ele, o que houve não há mais (caso da Buenos Aires de sua juventude) e novas construções vão sendo feitas com os novos amores (no caso, Lisboa).

Recordava esta semana, em prosa com minha amiga Tânia, do meu primeiro namorado. Chamemo-lo Júnior, pra evitar confusões. Naquela época, aos 12, 13 anos, no início dos anos 70, namorar era menos do que hoje se chama ficar. Não incluía nem beijo na boca. O que rolava era que o menino te pedia pra namorar e, se você aceitasse, andava com ele de mão dada na Feira da Paz.

Assim foi com o primeiro, o terceiro e o quarto meninos. Mas não com o segundo, o Júnior. Este foi o primeiro a me beijar. E, se eu já estava a fim dele, me apaixonei ali, ao lado do piano da casa da minha tia, onde fazíamos uma festinha inocente, músicas lentas e quentes, dançar junto ou separado. Só que naquela noite o Júnior, em vez de sentar ao meu lado e pegar a minha mão, sentou ao meu lado, pegou a minha mão, se virou pra mim e me beijou na boca, de língua.

Talvez o primeiro beijo, sim, nos defina pro resto da vida. Nunca vou me esquecer das sensações que vivi naquela noite de novembro de 1971.

O encanto com o Júnior, no entanto, logo se quebrou por outros motivos, que talvez ainda me definam ainda mais, e até hoje. Ele era reacionário. Moralista. Defensor do militarismo, que dominava a política brasileira na época, tempos de ditadura. E isso, definitivamente, cortava meu barato. Eu era apenas uma menina de 12 anos, mas já cultivava ideais. Era sonhadora, como meu ídolo, John Lennon, a quem imitava nas roupas, nos cabelos, nos óculos. Imaginava um mundo em que as pessoas pudessem viver em paz, e “Imagine” era minha trilha sonora.

A gente então começou a brigar. Terminava (por causa dos desentendimentos) e voltava (por causa dos beijos). Até que um dia ele me disse, vendo o movimento dos jovens nossos amigos:

– Se eu tivesse uma metralhadora, passava fogo em todos os maconheiros.

Aquela violência gratuita contra uma rapaziada inofensiva, que não fazia mal a ninguém, pôs o ponto final no resto de encanto que eu ainda tivesse.

O tempo passou. Alguns anos depois, o Júnior namorou minha prima. Chegaram a ficar noivos. Eu não entendia. Porque ela, como eu, era idealista e justa, de coração puro e bom. Como poderia ser feliz ao lado dele, com todo aquele militarismo e toda a intolerância? Pra nosso alívio, no entanto, o noivado terminou antes do altar e ela retomou seu caminho rumo à felicidade e à luta por uma sociedade mais justa, como não poderia deixar de ser. Thanks, Lord!

E o tempo seguiu passando. Umas décadas depois, eu já jornalista profissional, abro o jornal de manhã e vejo estampada de todo tamanho na página policial uma foto de três homens presos pelo assalto a um banco, que mobilizava a polícia havia dias. Um deles levantava a camiseta pra tapar o rosto, mas a legenda e tudo o mais não deixavam dúvida: era o Júnior. Assaltando banco!

Fui ler o material pra entender. Ele e dois amigos, um deles funcionário da agência, planejaram tudo. O bancário deu as informações sobre a falha na segurança que permitiria o assalto. O segundo entraria armado e pegaria o dinheiro. O Júnior aguardaria no carro pra dar fuga ao amigo. Deu tudo certo. Eles dividiram o fruto do roubo e combinaram de ficar na miúda até a poeira baixar.

Mas nosso anti-herói nunca teve nada de discreto. Nem ele nem seus comparsas. Guardou a bolada no cofre da empresa de seu pai, onde trabalhava, mas dali a alguns dias abriu duas polpudas cadernetas de poupança, uma no nome de cada filho. Os amigos também relaxaram nos cuidados. Só que a investigação policial já desconfiava do autor intelectual e o vigiava. Ao perceber que ele bebia sempre com dois parceiros, passou a monitorar o trio. Bingo! Foram pegos com a boca na botija. Cana nos três. Foto no jornal, com nome e sobrenome.

Li a matéria e liguei pra minha prima:

– Já leu o jornal hoje?

– Não. Por quê?

– Abra a página policial. Veja quem está de protagonista.

– Meu Pai! Gente, como ele foi se envolver nisso?

A gente ria e se compadecia. Afinal, ele já estava casado, tinha dois filhos. Imaginávamos a vergonha dos meninos, da mulher, dos pais e dos irmãos, que conhecêramos na nossa adolescência.

Espalhamos a informação por toda a turma da época. Não era bonito se comprazer, mas quem não viveu sua ponta de revanche ao ver o moralista, que queria metralhar maconheiros, indo em cana por assalto a banco?

E novamente o tempo passou, passou… Um belo 7 de setembro, feriado, a nossa equipe de plantão no jornal saiu procurando um restaurante pra almoçar. Poucos estavam abertos. Encontramos um perto da Savassi. Quando entramos, dou de cara com o moço do caixa sorrindo pra mim. Um pouco envelhecido, mais gordo, rumo à calvície, me saudou com o apelido pelo qual eu era chamada:

– Kakala! O Luca te falou?

Era ele, o Júnior. O Luca é o meu irmão que fazia parte da mesma turma.

– Júnior! Você por aqui? Não, o Luca não me falou nada, o que foi?

– É que ele esteve aqui mais cedo, almoçou com a esposa dele.

– Ah, não sabia. Estou com os colegas do trabalho. Então com licença, prazer em te ver.

Me sentei pra almoçar com os amigos, mas a Mariana, a mais divertida da editoria, ficou me provocando até eu contar tudo.

– Amor bandido! – decretou.

Antes da sobremesa, o pianista do restaurante tocou uma das músicas que embalavam nossas festinhas e aqueles primeiros e deliciosos beijos. Eu avisei à Mariana:

– Esta era a nossa música.

Antes da conta, lá vem o Júnior à nossa mesa:

– Ouviu a homenagem que pedi pro músico te fazer?

– Ouvi, sim, Júnior, obrigada.

Fomos embora. Rindo, levando tudo na brincadeira. No fundo, porém, fiz uma viagem no tempo. Senti pena, tristeza, um misto de emoções por aquela pessoa tão estranha, de quem eu já fora tão íntima. O passado passou, como disse o Manguel, mas as impressões do que vivemos, sim, nos constituem. Deixam marcas, e talvez ajudem a conformar o desenho do nosso rosto como somos hoje.

Mais tarde, recebo um telefonema do Luca:

– Você não vai acreditar. Adivinha quem eu encontrei hoje no restaurante?

– Eu também encontrei!

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