Eu era ainda muito jovem quando me descobri comunista. Ok, não exatamente comunista, mas picada pelo “estilete agudo” da consciência social. Tudo no povo me emocionava, a vida do pobre, o olhar, o andar, a postura, a roupa, a voz. Nunca me esqueci daquele senhorzinho puxando o filho pela mão, o pai de chinelinho, apressado, “anda, fio”, e a pressa de quem tinha que ganhar a vida, sabe lá Deus como.

Vicentino, Papai atendia os pobres. Mas a mim não me bastava dar de comer a quem tem fome, se eu via o sistema injusto deixando de fora da refeição 90% dos viventes. Era tempo de ditadura, e nem esbravejar contra isso se podia. Era comunista quem fosse contra “aquilo tudo”. Virei comunista. Meu pai ficava indignado: “mas o comunismo tira a liberdade das pessoas, não vê a União Soviética?”, e eu respondia que eu não queria aquilo. Queria justiça social e liberdade política. Era isso que era ser comunista aos meus 14 anos.

O tempo passou, a música popular brasileira nos tocava as cordas mais sensíveis do coração. Eu ouvia o Rancho da Goiabada e chorava:

Os boias-frias

Quando tomam umas biritas

Espantando a tristeza

Sonham com bife a cavalo, batata frita, e a sobremesa

(…)

São pais de santo, paus de arara, são passistas

São flagelados, são pingentes, balconistas

Palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados

Dançando dormindo de olhos abertos à sombra

Da alegoria dos faraós embalsamados

João Bosco e Aldir Blanc falavam daqueles por quem eu me compadecia e em quem pensava quando imaginava ser feliz um dia: como posso ser feliz se o pobre meu irmão sonha com batata frita e come restos do lixo dos outros? O tempo continuou a passar, a ditadura acabou, a redemocracia melhorou a vida das pessoas, houve idas e vindas, teve gente que nunca na vida havia estudado e afinal conseguiu pôr um filho na faculdade, gente que viajou e foi conhecer o mar, gente que passou a ter frango na mesa, a comemorar aniversário com picanha na churrasqueira (eu não gosto, mas isso é problema meu). Viramos comunistas todos? Claro que não.

Vendo imagens de gente comprando ossos de animais pra dar gosto à sopa de água; vendo gente morrer às pencas e, quem não morreu, a escavar com as unhas a lama à procura dos corpos de seus entes queridos; vendo gente morando acampado e enfileirado à beira dos córregos que vão transbordar hoje ou amanhã; gente que não vale nada, pois a enxurrada é mais forte, seja a que a natureza revoltada manda, seja a enxurrada de destruição que suas vidas vêm enfrentando quanto mais distantes eles ficam de políticas públicas que os contemplem…

O que fazer, Lênin? O que fazer, gente? Mandar um pix, me alertam, só serve pra aplacar nossas consciências pesadas. Mas a culpa continua sendo do sistema bruto, do poder da grana que ergue, para poucos, coisas belas, e destrói a maravilha do planeta, que era pra ser de todos… Ah, não, volto a chorar torrencialmente, e me lembro dos boias-frias de Aldir Blanc, morto de covid, um dos 650 mil brasileiros vítimas do genocídio meticuloso que não poupa armas pra dizimar nossa população.

Mando meu pix, choro. Ajudo minhas amigas de Petrópolis a adotar 30 famílias que vão morar em segurança enquanto durar a tormenta. Choro. Faço campanha política pra defenestrar o governo genocida antes que ele acabe com o que resta do Brasil. Choro. Sonho com batata frita e a sobremesa. Um sorriso, uma cabeça erguida, um preto com diploma, uma mulher trans que consegue chegar em casa sã e salva numa noite paulistana. Sonho e choro. Sou comunista? Seja lá o que for, não dá pra ser feliz vivendo tudo isso que estamos vivendo. Temos que passar do sonho ao fazer. Façamos, vamos amar!

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