Sabe o cúmulo da habilidade? Uma costureira costurar com os fios da memória. Não é outra coisa o que faz Clara Arreguy nessa emocionante história de família. Na virada do século XIX para o XX, um João alfaiate deixou sua aldeia em Portugal e atravessou o Atlântico, trazendo na bagagem uma desavença familiar, um amor perdido e um desejo de futuro; mais de um século depois, um seu neto João faz o caminho de volta, levando na bagagem uma desavença familiar, um amor perdido e um futuro opaco, pois está para morrer de câncer. João busca a si mesmo, na busca pelo avô.

Entre esses dois planos narrativos, um narrador ausente trama os fios de memórias vividas e inventadas. De um lado, os delírios de um velho alfaiate português, com as saudades caladas e profundas de uma vida sofrida, mas amada, uma vida que começa difícil e se ergue em dignidade e alegria; de outro, os arrependimentos e a falta de perspectiva de um outro homem, seu neto, também velho, apesar de moço, com as saudades amargas de uma vida que começa fácil e caminha para um desfecho trágico. Entre os dois planos, as vozes da poesia popular e de Camões fazem as vezes de marcação de percurso, na costura elegante alinhavada por Clara Arreguy com mão de costureira que entende do ofício, de alfaiate que sabe onde fazer o corte.

Clara Arreguy vem construindo, de maneira crescente, uma obra narrativa de grande coesão, em romances nos quais se destacam a indissolúvel relação entre forma e conteúdo. Quando a fábula e a trama são espelhos uma da outra, pode-se dizer que o autor alcança a maturidade narrativa, tal como demostra esse “Dia de sol em tempo de chuva”, cujo título descreve, por si mesmo, a grande realização da autora.

Prepare-se, leitor: você vai beber o livro de um trago só, embriagado pela ginjinha dessa narrativa que, ao ligar o interior de Minas com a Beira Alta, o Muriaé com o Dão, nos faz meditar sobre o tempo vivido de cada um e viajar pelo que há de mais humano em todos nós.

Marcus Freitas, poeta e romancista

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