Nosso Clube de Leitura Arco-Íris gosta de alternar clássicos e produções atuais, brasileiros e estrangeiros, preferindo a prosa à poesia, por se sentir mais à vontade com esse tipo de leitura. Nesse mês que passou, nos dedicamos a ler (alguns, como eu, a reler) O Coronel e o Lobisomem (Companhia das Letras), de José Cândido de Carvalho. Lembro de tê-lo lido na juventude e do tanto que gostei, que achei engraçado.
Agora, tudo mudou. Mudou Vila Isabel e mudei eu. A principal qualidade do romance, lançado em 1964, é a linguagem em que o escritor fluminense reproduz, de maneira divertida, o linguajar popular, cheio de invencionices que calham bem tanto à ambientação da roça quanto à personalidade do protagonista narrador, o coronel Ponciano de Azeredo Furtado, com seus dois metros do pé ao chapéu e sua barba vermelha. Quer ter uma ideia? Lembre-se de Odorico Paraguaçu. Relendo José Cândido, dá pra ter certeza de que Dias Gomes bebeu da fonte de seu contemporâneo na hora de criar seu coronel, com seu falar invencioneiro e caricaturento. Até o ajudante gago do coronel Ponciano encontra eco no Dirceu Borboleta de O Bem-Amado.
O problema do romance em questão, no entanto, são dois: o primeiro, de narrativa. O livro começa com uma fieira de casos soltos, sem uma linha de continuidade que amarre nada a nada, e por isso se faz cansativo para o leitor. Apenas da metade em diante é que ele começa a contar uma história propriamente, que é a do coronel com os falsos amigos Nogueiras, um bando de trambiqueiros a lhe tirar vantagem, sob o pretexto de que dona Esmeraldina nutriria pelo coronel um sentimento verdadeiro. Daí pra frente o livro ganha ritmo, fluência, suspense, a narrativa encontra unidade e conduz o leitor sem percalços até o final, por sinal um lindo final.
Mas o outro problema é a mudança mencionada acima. Mudamos todos, o mundo, a literatura, as mulheres, os leitores. Não dá mais pra achar graça em personagens com tal grau de machismo, racismo, homofobia, ainda que dados todos os descontos de época e lugar. O Coronel e o Lobisomem é um livro de um personagem só. Se o coronel tem elementos complexos em sua construção – é autoritário e delicado em momentos alternados, é rude e ao mesmo tempo gentil, é inteligente e burro, é tanto safo quanto otário -, não há outros personagens com tais nuances. Os demais são planos, lineares. Mulheres não há como personagens dignas desse nome. São todas objetos, o corpo objetificado, desejado, usado, comerciado.
A gente dá o desconto do contexto, mas permanece uma imensa lacuna entre o que pode ter sido excelente naquele tempo mas que, lamentavelmente, envelheceu.
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