Acabo de ler O Olho Mais Azul (Companhia das Letras), de Toni Morrison, e ainda estou em choque com um dos livros mais tristes, duros e ao mesmo tempo belos que já li. Quando a gente fala em racismo estrutural, muita gente não entende. Lendo o livro da escritora norte-americana, vencedora do Nobel, a explicação vem com clareza, embora passe longe de qualquer teorização ou racionalização. Pelo contrário.
O Olho Mais Azul conta a história de três meninas negras no sul dos Estados Unidos nos anos 1940. Em pleno vigor das leis de segregação, quando ser mulher, preta, pobre e criança era o mais baixo na escala social. A todo tipo de violência essas meninas estão sujeitas. Em casa, na rua, na escola. Mas sobretudo em sua própria formação como seres humanos. Pois o racismo lhes é introjetado ideologicamente. São tratadas como feias, párias, inferiores, imprestáveis, O afeto passa longe.
Claudia e Frieda são irmãs. Pecola, coleguinha. Pecola é descrita como a pessoa mais feia que qualquer outra já terá visto. Seus cabelos crespos, seu nariz largo, seus lábios grossos, seus olhos negros, a cor escura de sua pele – eis aí os motivos para ela ser a menina mais feia, mais ridicularizada, mais humilhada por onde vá. Como aprender autoestima, como aprender a se amar, a se valorizar, se toda uma sociedade lhe reserva somente o desamor, o autodesprezo, o desvalor em todos os níveis.
Nada disso impede, no entanto, que Pecola seja abusada sexualmente, seja ainda mais violentada em sua carne. Na carne da criança que cresce em seu ventre. E a escritora, que trouxe de sua infância essa tristíssima personagem, faz questão de não conferir tratamento maniqueísta ao problema. Ao visitar a história pregressa da mãe e do pai de Pecola, revela em alguns dos opressores novas vítimas de agressão, de menos valia.
E assim se estrutura o racismo: de fora pra dentro, mas também de dentro pra fora, de pai pra filha, de mãe pra filha, ao som e ao brilho do cinema de Hollywood, com seus padrões de beleza, e tendo como pano de fundo a casa da família branca onde Pauline (a mãe) trabalha e se espelha pra adotar o ideal de felicidade.
Pecola quer tanto ter olhos azuis – pra superar a pena a que está condenada – que enlouquece. Sem adjetivações melodramáticas, sem firulas estetizantes, Toni Morrison constrói o mais forte retrato de uma realidade situada num momento específico do século XX, que perdura século XXI adentro. Lá, aqui, por toda parte, a cada batida policial, a cada piada sem graça, a cada mulher preta violentada.
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