Devo muita coisa ao mestre Paulo César Bicalho, meu primeiro professor de teatro. Ele nos dava aulas no Centro Pedagógico da UFMG no início dos anos setenta, quando éramos adolescentes cheios de timidez e carentes de autoestima. Foi ele que nos ensinou a buscar um relaxamento na hora de encontrar as paqueras, movendo a língua dentro da boca, de modo a soltar as bochechas e não travar os dentes. Fundamental naquele momento. Nos dirigiu nas primeiras peças que ensaiamos, ainda com o sonho remoto de ser atriz. Mas o mais importante que aprendi com ele, naquela idade, foi a gostar de Ouro Preto.

Minha família já frequentava a mais famosa cidade histórica mineira desde sempre, porque meus pais integravam, com meu tio João Etienne Filho, o Grupo do Teatro em Família (GTF), que de vez em quando se apresentava na cidade com seus grandes sucessos, “O auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, e “O Natal na praça”, de Henri Gheon. Só que nas primeiras idas à antiga Vila Rica do Pilar eu não era tocada pela cidade. Me faltava conexão. E isso só fui aprender numa excursão conduzida pelo professor Paulo César Bicalho.

Andávamos pelas ruas centenárias em volta do mestre e ouvíamos dele o comando:

– Olhem bem para essas construções. Ouçam o que dizem as pedras das calçadas. Mirem o horizonte e viajem no tempo. Visitem o passado. O que dizem estas montanhas? O que dizem estas casas? A Igreja do Rosário dos Pretos, quem a ergueu? Como?

E aí, meu amigo, não tinha como não mergulhar naquela história viva, na riqueza e na miséria construídas pelas mãos dos negros escravizados duzentos, trezentos anos antes, enquanto o ouro fazia a fortuna de pessoas e países, e enquanto o fosso social no Brasil se aprofundava até dar num presente de desigualdade e injustiça. Aquele presente dos anos setenta que é o mesmo há cinquenta anos.

Me apaixonei por Ouro Preto e seu casario, o barroco, as igrejas, as artes do Aleijadinho, as ladeiras, os sinos, os morros ao longe, o quadro vivo de Guignard que se impregnou para sempre nas minhas retinas.

Voltei mil vezes à cidade. Quando estudante, fizemos ali, na praça principal, o Congresso de Reconstrução da União Estadual dos Estudantes (UEE/MG); dormíamos nas famosas repúblicas, onde dançávamos a noite inteira nas festas do mau gosto, tomávamos conhaque pra afastar o frio e o fog.

Aprendiz de atriz, me apresentei no histórico Teatro Municipal de Ouro Preto, agora eu também no GTF, sob a direção do Etienne e contracenando com meu outro saudoso Tio Gastão e com meu irmão Beto nas peças “Amor por anexins”, de Artur Azevedo, e “O pedido de casamento”, de Tchekhov. Adulta, passeamos por lá ene vezes quando meu irmão Ric estudava em Mariana e a cidade vizinha era palco de noitadas, encontros e desencontros. Voltamos também para um sem número de passeios com Mauro Werkema e a turma do Palácio das Artes. Pulei carnaval no Balanço da Cobra e fui até jurada num desfile de escolas de samba!

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A última vez em que estive por lá foi no meio de uma das nossas viagens de bicicleta com o Grupo Dá Pedal. Foi a da Estrada Real, que bifurca em Ouro Preto. O caminho novo segue pro Rio de Janeiro; o velho, pro Sul de Minas, passando pela esquina de São Paulo e descendo, literalmente, até Paraty. Fizemos esse último trecho.

A parada na Praça Tiradentes foi inesquecível. Vínhamos pedalando num trecho difícil a partir de Mariana. Eu já havia descido da bicicleta e embarcado no carro de apoio dirigido pela Clarice. Enquanto esperávamos a chegada dos rapazes, compramos uma garrafa de champanhe e uns copos de plástico e fizemos ponto ao pé da estátua do mártir da Inconfidência.

Nossos heróis entraram na praça esgotados, sem pernas nem fôlego a não ser para o merecido gole que os aguardava. A maioria deles, gaúchos e catarinenses, não conhecia a antiga capital de Minas, patrimônio histórico da humanidade. Cercados pelo ambiente mágico de uma tarde fria, nos abraçamos todos, trocamos vivas e brindes, obedecendo à máxima que movia o grupo:

– É champa que as queridas querem? Champa pras queridas!