Recebi esta mensagem do escritor (autor do excelente Peise morto) e professor de literatura Marcus Freitas e gostaria de compartilhar com meus leitores:
Clara, minha querida,
Acabei hoje cedinho de ler o Tempo Seco. Quando cheguei do lançamento na segunda-feira (desculpe termos saído à francesa, tínhamos um compromisso), já era tarde, mas ainda assim li um bocado. Ontem dei duas sentadas e fui quase ao fim. Hoje cedinho acabei. Aqui vão portanto as impressões da primeira hora.
O impacto é grande. Você escreveu um texto muito bom, com uma dicção muito própria, uma voz logo reconhecível pelo leitor. O texto é também muito, muito corajoso, naquilo que ele tem de aparentemente sombrio, mas no fundo de profundo experimento de iluminação. Talvez você nem se dê conta dessa coragem. Ou melhor, acho que você se dá conta sim, mas talvez preferisse que os leitores não a vissem de maneira tão escancarada, porque ela destrói mitos que te eram caros. Sei que estou soando meio confuso, mas vou me fazer entender, por partes. Por enquanto, fico nisto: seu texto é sombrio e melancólico no primeiro impacto, porque conta a história de uma terrível decepção, uma perda avassaladora da ingenuidade e das ilusões, e por isso ele acaba por ser iluminador. E por isso mesmo ele é muito corajoso, sendo você quem é. Então vamos lá.
Vou falar, por um lado, do percurso de iluminação através da perda das ilusões (um elemento da trama e da posição ideológica do texto), e vou falar, por outro lado, das opções narrativas para realizar esse percurso. Há coisas de que gosto e não gosto nas duas operações, e há algo de engraçado: como num quiasmo, o que dá grandeza ao conteúdo iluminador é uma escolha menor, a meu ver, do ponto de vista narrativo.
Começo pelo início: o romance me incomodou muito no começo, por causa da militância emocional da Míriam a favor do governo Lula, com cenas de petismo explícito, tais como o capítulo COMO DONA MARIA TERIA (p. 47). Meu malestar vinha de dupla fonte: a primeira é que essas digressões militantes pareciam gratuitas diante da narrativa até ali; em segundo lugar, porque, como talvez saiba você, nunca fui petista, nunca votei no Lula, nem nos momentos em que o voto útil pareceu mais necessário. Meu anarquismo individualista nunca deu a menor bola para o leninismo petista. Nunca achei e não acho que o mensalão e todas as outras diatribes fossem acaso. Para mim, foram sempre o evento natural de um partido revolucionário e, portanto, corrupto, mentiroso, sórdido, etc, etc. Sempre achei a posição da Míriam e do Rodrigues, que liam tudo aquilo como desvio de uns poucos ao contato com o poder, de uma ingenuidade sem fim, de uma ingenuidade muito útil para os leninistas da hora.
Bem, mas algo me dizia que o petismo no romance era tão explícito que não podia ser gratuito, e segui em frente esperando no que ia dar, na expectativa de uma virada. Ao mesmo tempo, me incomodava também certo realismo socialista, como no capítulo diginificador do Velho Leôncio, elogio emocionado da classe trabalhadora, mas fui em frente. A essa altura você deve estar pensando: “Meu caro amigo Marcus, meu querido Baquinha não gostou nem um pouco e leu o livro como um tremendo reacionário”. Sabe, no entanto, que não é isso. Conheço e respeito bastante você para saber da enorme dignidade da sua posição política pessoal, da sua tradição familiar (aliás, o Miro tem muito do Tostão, não tem não!?), da sua crença real e sincera nessa mistura de socialismo teórico e prática cristã, que aparece na descrição que o Antônio de Pádua faz do Nonato, à página 36/37: “Nonato, você pode não ter misticismo, desconsiderar a espiritualidade, mas não deixa de ser um crédulo. Olha sua postura diante da política, diante do amor. Quer alguém mais crente, esperançoso e caridoso que você, meu amigo, só para citar as virtudes teologais do catecismo que você abandonou?”. Assim sendo, lia com afinco, incomodado, mas com uma pulgona atrás da orelha: “será que a Clara vai fazer o Rodrigues e a Míriam caírem do cavalo, das nuvens? Será que ela vai ter essa coragem? Será que ela vai se impor essa amargura?”
E você fez. Não tenho certeza de até onde você fez a queda com toda a consciência, mas ela está lá explícita. Você a fez com toda a consciência narrativa, com certeza, mas não sei se com toda a consciência moral do seu ato. Acho que sim, e por isso falei no começo em desmedida coragem. Explico: a queda do Rodrigues do alto das suas ilusões amorosas é a alegoria acabada da queda dele e da Míriam das ilusões partidárias, revolucionárias. Foi isso mesmo que você quis fazer? Pois foi exatamente isso que você fez, mesmo que a intenção não tenha sido essa! Você contou, alegoricamente, a perda das ilusões longamente acalentadas pelas personagens (e talvez pela autora) no revolucionarismo leninista, que se revela afinal com o rosto que sempre teve, desde o começo: a canalhice da Dorinha e a rapacidade do Ezé, mestres em fazer de bobo o Rodrigues, constituem homologias perfeitas dos dirigentes do PT fazendo de bobos os seus militantes sinceros e ingênuos, uma vez que o Rodrigues é o possuidor das duas ingenuidades.
Ao final da narrativa, no capítulo aterrorisante em que o Rodrigues se contempla como um imbecil, corno, burro, idiota, mané, você não avança no tópico da desilusão política, mas não precisa, pois a homologia está explícita. Essa corajosa mirada no espelho que devolve a imagem de um tolo, foi feita pela narradora no capítulo final: “A quem odiar então? A quem me traiu, me enganou, me fez de boba? Odiar a mim mesma, que me fiz de boba para ser feliz, e fui. É este o ponto: queria tanto ser feliz que não podia abrir mão daquele momento em nome do conhecimento. Sabedoria implicaria sofrimento, e isso eu não queria, eu não aguentava”. Mas, o mais legal vem aqui: depois dessas orações duríssimas, a narradora reconstrói o mundo, como o Álvaro de Campos faz ao final da Tabacaria, “sem ideal nem esperança”, mas com uma dignidade imensa diante de si mesmo: “Tem culpa quem? Não odeio ninguém”. Acho de grande beleza essa forma da narradora se redimir da ingenuidade, de não se ver como uma pateta, mas como um ser humano que acredita e erra, vive de errância. Muito dessa dignidade está na escolha do Antônio de Pádua para ser aquele que vê tudo desde o começo. Fui em busca do significado, que com certeza foi intencional para você, mas que eu, sem formação religiosa nenhuma, tive de procurar:
Santo Antônio de Pádua: Protetor dos pobres, o auxílio na busca de objetos ou pessoas perdidas, o amigo nas causas do coração.
O fato de você ter trazido a voz final para a narradora, retirando o foco da Míriam e do Rodrigues, foi a estratégia de dar grandeza ao percurso sombrio do livro. Entretanto, quero criticar um pouquinho essa estratégia, do ponto de vista narrativo. Preferiria que, enquanto romance, você tivesse mantido o plano ficcional, fazendo a Míriam ter esse choque final de consciência, e não a narradora, que em última instância não tem como ser outra senão você, em função do modo como ela foi montada. Volto então ao começo, para falar dessa estratégia narrativa.
No começo as referências ao percurso da Míriam são todas na 3a pessoa, tipo: Míriam “se pegou comentando”, ou “Mineira e atleticana doente, [Míriam] sempre teve entre as figuras mais insuportáveis…” (ambas as referências na página 13). Na página 30, aparece a primeira intromissão da narradora, que se quer confundir com a Míriam. Em vez de dizer que a história poderia ser diferente, como Míriam ouviu em Brasília, o texto diz: “como OUVI algumas vezes aqui em Brasília…”, usando a primeira pessoa. Essa mistura intencional é que permite, no último capítulo, trazer toda a reflexão para o campo da narradora e dar à meditação sobre as ilusões políticas a sua dose cavalar de coragem, no processo de desmitificação do autoengano (aliás, já leu o AUTOENGANO, do Eduardo Gianetti? Se não leu, leia!). Entretanto, acho que a narrativa perde ao ser desmascarada a ficção no começo do capítulo final. Ao fazer o movimento de reflexão metatextual (“Essas histórias não foram contadas por ninguém…”) você diminuiu o valor ficcional da trama de amor traído tão bem arquitetada, com os grandes e universais personagens da Dorinha, do Rodrigues e do Ezé. Preferia que você tivesse feito a Míriam, e não a narradora, assumir a reflexão que começa na frase “Ninguem traiu ninguém.” O estatuto ficcional teria dado ainda mais impacto ao seu estudo das ilusões perdidas. Mas eu aceito sua escolha, porque ela tornou mais corajosa a sua desmitificação do autoengano político.
Será que li com alguma clareza? Com certeza li com gosto. Quero mais.
Beijos de amigo e autor.
Marcus Freitas
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