Publicado na minha coluna da intranet do MDS:
Este mês fiquei em dúvida sobre qual assunto tratar na coluna, porque acabara de ler dois livros que me impressionaram muito. Um, o “Quase memória” (Alfaguara/Objetiva), de Carlos Heitor Cony, comovente quase-romance sobre o pai do escritor e jornalista. O outro, o novo romance de Henning Mankell, “O homem de Beijing” (Companhia das Letras). Como o do Cony era bem mais antigo do que o do sueco, muita gente já o leu ou ouviu falar (como eu, que ensaiava lê-lo havia anos), optei por ficar com o último.
Henning Mankell também é bastante conhecido, principalmente pela série de romances policiais protagonizados pelo inspetor Kurt Wallander, que acabou sendo transposto para a televisão e estrelando uma série de filmes. É um clássico contemporâneo do gênero. E o fato de ser ambientado na gélida Suécia não impede a identificação de leitores de toda parte do mundo, inclusive brasileiros. Tudo porque as narrativas de Mankell retratam um tempo globalizado, uma Europa em que a migração de trabalhadores africanos e de outras partes do planeta gera conflitos de toda sorte, culminando em violência até então distante daqueles nórdicos assépticos. Vide o assassinato em massa cometido por aquele neonazista na Noruega, há pouco mais de um mês.
Em seu mais novo romance, “O homem de Beijing”, Mankell troca o inspetor Wallander pela juíza Birgitta Roslin, que, sem perceber, acaba entrando na investigação de um crime em massa cometido contra a população de um vilarejo no Norte da Suécia. Ela descobre o parentesco de sua falecida mãe com um dos casais assassinados e daí passa a se interessar – e a se envolver – por uma trama que retorna 150 anos antes. Numa verdadeira saga, trabalhadores chineses são explorados em seu país, semiescravizados no Oeste dos Estados Unidos e enganados na volta.
Por trás de uma estrutura policial clássica, o autor sueco brinda seu leitor com mais uma história do mundo globalizado, ainda mais antenada com as mudanças do nosso século e do nosso planeta. Afinal, paralelamente à vingança dos personagens principais, o livro mergulha numa discussão sobre os destinos da China, maior potência em expansão, as disputas de poder dentro do Partido Comunista Chinês em torno da economia de mercado, do papel do Estado, da expansão neocolonialista rumo à exploração de uma África órfã, o avanço das desigualdades sociais que penalizam cada vez mais os agricultores pobres que um dia tomaram para si a revolução que implantou o maior país socialista do mundo.
Europa decadente, China expansionista, África dependente, sistemas judiciais em xeque, crises conjugais, ideológicas e pessoais, violência, suspense e tensão – em “O homem de Beijing”, com suas 500 páginas, não falta assunto interessante. É leitura absorvente, inteligente e instigante, que não assusta quem gosta de um bom livro. Pensei que gastaria um mês para lê-lo, levei uma semana.
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