Um dos meus autores prediletos é José Saramago (1922-2010). Desde que li pela primeira vez uma criação sua – o “Memorial do convento” –, nunca mais parei. Me viciei em sua linguagem aparentemente complicada, mas de uma limpidez admirável.
Aos poucos, fui conhecendo, além da obra, a personalidade forte, as posições políticas e ideológicas do último comunista coerente da militância cultural. Certa feita, editora de Cultura, tive a oportunidade de entrevistá-lo, por telefone, e nunca esqueci a gentileza, a serenidade, as respostas francas e diretas do já então Prêmio Nobel de Literatura.
Creio que ele deixou algumas obras-primas, como “Ensaio sobre a cegueira” (brilhantemente adaptado para o cinema por Fernando Meirelles), “A caverna”, “O evangelho segundo Jesus Cristo”, que lhe rendeu a antipatia da Igreja Católica em seu país, Portugal, e tantas outras.
Na minha penúltima ida a uma livraria, comprei uma edição de bolso de “História do cerco de Lisboa” (Cia. das Letras, 1989), um de seus livros mais antigos que ainda não tinha lido, e mergulhei nele pensando se tratar de romance na linha histórica, como o “Memorial do convento”. Não é. E qual não foi minha surpresa quando constatei se tratar de uma narrativa protagonizada por um revisor – o revisor de uma “História do cerco de Lisboa” – que decide, sabe-se lá por que, interferir no conteúdo do que está revisando e introduzir uma mudança nos rumos da história.
Profissional do mesmo ramo, me identifiquei com esse anti-herói impelido a se tornar, de revisor do trabalho alheio, autor da própria obra. Em meio à metalinguagem que vai desenrolando, Saramago não abre mão de filosofar, de criticar, de comentar, como fez até o fim da vida, sempre um dos mais agudos observadores do mundo, da política, da existência. Com brilho e lucidez eternamente invejáveis.
Coluna publicada na intranet do MDS
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