A febre de Harari é geral. Também li o “Sapiens” e gostei com ressalvas, pois, apesar de achar interessante e divertido o livro, achei que o autor, em alguns momentos, se porta como cínico, tratando conceitos com displicência. Por exemplo, ao chamar de religião o capitalismo, o marxismo, etc. Ora, quem leu e entendeu Marx sabe que marxismo é método de análise, não ideologia a ser venerada, e quem se diz marxista e venera dogmas não entendeu nada. Apesar disso, achei “Sapiens” repleto de informações, e com teses curiosas, como a de que o trigo domesticou o homem, e não o contrário, entre várias outras.

Não há dúvida de que Yuval Noah Harari é bom historiador. Não queria ler o segundo livro, o “Homo deus” (Companhia das Letras), porque me sentia contemplada pelo primeiro. Mas ganhei de presente o “21 lições para o século XXI” e me disseram que sem dominar o conceito de algoritmo, que ele explora no segundo, o terceiro livro seria mais complicado de entender. Daí lá fui eu enfrentar o “Homo deus”. E aí começou a minha briga pra valer com o autor.

Como disse, em matéria de história Harari domina. Enquanto ele historia, o livro diverte, ensina. O autor escreve bem, tem ótimas sacadas. Mas pra mim o que fica a dever é em matéria conceitual, de filosofia, mesmo. Novamente ele decide que tudo é religião, misturando no mesmo balaio ideologia, filosofia, as próprias religiões. Empobrece sua análise ao desconhecer campos de estudo, e por isso o considero cínico: porque o faz fingindo não saber que as coisas existem.

Afirma, por exemplo, que a ciência não tem ética, pois a ética seria dada pela religião. Pra ele não existe o campo ético sem questões de fé metafísica. Então não há bioética? Tudo pode quem não possui fé? Também finge que não existe, por exemplo, o socialismo democrático. Ou a extrema direita, hoje em ascensão em todo o mundo. Então, ou há o capitalismo (o livre mercado, sem as variações predatórias como as que conhecemos tão bem abaixo do Equador) ou há o “comunismo”, o fiscal do partido determinando que livro você pode ler. Como se o mundo não tivesse mudado, e não estivesse mudando continuamente em termos ideológicos e de construção de alternativas políticas, sociais e econômicas.

Ele, em sua tese, só leva em conta os avanços tecnológicos, que estão conduzindo o mundo para a solução de guerras, fome e doença, deixando ao Sapiens o desafio de vencer a morte e tornar-se deus. Aqui ele entra com o conceito de algoritmo: todos os seres são algoritmos geradores e processadores de dados, e tudo que pensamos ou fazemos é produto desses algoritmos. Como estamos criando inteligência artificial mais eficiente que os próprios Sapiens, em breve essas IAs tomarão o lugar dos humanos, pois saberão fazer qualquer coisa melhor que nós.

Toma a subjetividade humana como mero produto de descargas elétricas, fingindo que não existe o inconsciente, e em nome da ciência afirma que nem mesmo a individualidade existe, porque em nossas mentes cada hemisfério comanda de um jeito, fazendo com que os desejos de um sejam múltiplos. Assim, não haveria um, mas uns tantos em cada ser. É, no meu entender, sofisma. Assim como falta Marx em suas análises, falta Freud. Falta profundidade, e essa superficialidade, acredito, serve à conquista de leitores, ao best-seller, não ao debate.

O livro aponta, na sua “história do futuro”, que os Sapiens se tornarão descartáveis diante dos algoritmos criados por eles próprios. Superados. Acho que funciona como ficção científica, mas deixa enormes lacunas. Segundo ele, até arte e poesia a IA fará melhor que o seres humanos, porque os algoritmos dominam a fórmula. No dia em que um algoritmo fizer humor ou tiver um olhar amoroso e compassivo a gente conversa.

Beijos!