O grande escritor Moacyr Scliar morreu em fevereiro de 2011. Lancei o Catraca Inoperante em abril do mesmo ano. Por isso acredito que a orelha que ele escreveu pra mim deve ter sido uma das últimas que fez, com a generosidade que sempre o marcou. Vejam que beleza:
A crônica é um espaço literário dentro do jornal. E é um gênero eminentemente brasileiro, um gênero já clássico em nosso país. Não podemos esquecer que José de Alencar e Machado de Assis escreveram crônicas, e bem assim João do Rio, e Rubem Braga, e Fernando Sabino, e Paulo Mendes Campos… Todos eles conseguiram transferir, para textos curtos, o cotidiano brasileiro, através sobretudo de um estilo descontraído que, no entanto, resultava em grande literatura.
A essa estirpe de jornalistas-escritores junta-se agora Clara Arreguy, com o belo Catraca inoperante. Nesses textos, Clara Arreguy usa sua experiência de jornalista e, sobretudo, a sua empatia, a sua capacidade de observação e a sua extraordinária sensibilidade, para retratar a realidade de nosso país, em textos bem-humorados e comoventes, textos que, na sua aparente simplicidade, mergulham fundo na condição brasileira.
É bom lembrar que no romance Tempo seco (2009), Clara já combinara, com êxito, a ficção com flagrantes do cotidiano, captado sobretudo através de histórias de taxistas de Brasília, esta uma cidade que, de certo modo, representa uma síntese de nosso país. Uma síntese que é apresentada com indisfarçada emoção, com orgulho mesmo.
Tomem como exemplo este trecho da crônica Brasil dá aula de paz na convivência: “Pensando assim, em como brasileiro é bicho de olho azul ou preto, pele morena, vermelha, amarela ou branquinha, cabelo liso ou encaracolado, espetado para cima ou crespo, ‘redondo’, como diz meu sobrinho, de lábios finos ou beiços largos, baixinho e mulato como o Popó ou vara-pau e careca como Tande, alemãozinho como Guga ou rastafári como Toni Garrido, é que dá alegria de ser brasileiro. Gente bonita, amiga, solidária, um laboratório em que o planeta deveria se mirar se tivesse a intenção de construir um futuro de harmonia entre diferentes.”
Convenhamos que essa descrição representa uma visão totalmente diferente daquela que fazem os céticos, os pessimistas, enfim, os que cultivam o hábito de falar mal de nosso país. Através de suas crônicas, Clara nos faz ver a realidade de modo diferente – e melhor. O que é, afinal, o objetivo maior de toda grande literatura.
Moacyr Scliar
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