Fui a Floripa pela primeira vez em 1980, para o Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação (Enecom). Ficamos uns dias ali, eu e colegas de curso, vivendo experiências novas, diferentes. A mais revolucionária delas foi comer peixe. Até então, eu não gostava, mas na capital catarinense aderi a esse alimento e acabei passando todos os dias sem comer carne vermelha, me alimentando de frutos do mar, legumes e verduras, que também não sabia apreciar. Resultado: ao voltar pra casa, resolvi esticar a temporada sem carne, parei de sentir dores nos dentes e prisão de ventre, e faz 41 anos que a nova dieta me tornou mais saudável e feliz.

Voltei a Floripa em minha segunda viagem com o Ney. Lá na época também tínhamos um primo, o Tony. Ficamos na casa dele, num bairro com o incrível nome de Saco dos Limões. O Tony trabalhava a semana inteira, então Ney e eu pegávamos o ônibus e a cada dia íamos explorar uma nova praia. A ilha tem dezenas delas, não nos faltavam novidades. Um dia era baleia nadando em frente a nós; no outro, praia salgada com cachoeira de água doce ao lado. Que sensação maravilhosa! E a Joaquina, com os surfistas e toda aquela juventude dourada e alternativa que tanto nos encantava!

Nos fins de semana, nosso primo de folga, com a namorada, nós quatro alugávamos um carro e partíamos pra destinos mais distantes, onde se pudesse passar o dia, almoçar num lugar diferente, aventuras, conhecendo novas e novas praias. Aquela em que a colonização havia sido feita por açorianos, norte, sul e leste da ilha. Só o oeste, que dá pro continente, não tem a graça do restante do litoral. E a vastidão ainda pouco povoada de gente, mas repleta de campos, matas, lagoas, um sonho!

Quem nos conhece sabe o tanto que somos apaixonados por futebol. Eu, atleticana; o Ney, americano. Mas apreciamos o esporte em geral. Numa das semanas em que estávamos lá, o noticiário local badalava o jogo Avaí e Figueirense que ocorreria no domingo. “O maior clássico de todo o Brasil!”, anunciavam. A gente achava graça, mas o título se justificava: tinha sido, até então, o clássico local mais vezes disputado entre todos do país.

Naquela semana o Ney cismou de ir ao estádio:

– Vamos, Clarinha? Vamos lá ver Avaí e Figueirense?

– Ah, Ney, não sei se animo. O estádio é longe, o jogo termina domingo à noite, vai lotar, até chegar em casa será uma canseira…

– Mas vai ser legal, a gente devia ir.

Ficamos nesse embate uns dias, até que eu notei que havia algo mais:

– Ney, confessa, por que é que você quer tanto ir assistir a Avaí e Figueirense?

– É que o Colatina tá jogando no Avaí e tô morrendo de saudade de xingar o Colatina…

O Colatina era um lateral que tinha jogado no América um tempo e que matava meus irmãos e meus primos de raiva.

***

Uns anos depois, os pais do Tony também se mudaram pra Floripa, o que motivou mais umas idas minhas à capital catarinense. Na primeira delas, pro casamento do primo, a ideia era ajudar a Tia Quiquica. O Tio Pimentel tinha Alzheimer e necessitava de cuidados o tempo todo, então minha querida tia vivia exausta do trabalho da casa, do marido, de si própria. Cheguei à cidade de manhã. Ela não estava em casa. Tinha ido ao salão se arrumar pro casório. Corri pra lá pra também dar um tapa no visual. Ao vê-la fazendo as unhas com o pé pra cima todo inchado, logo intuí que teríamos problemas. Ela havia sofrido uma queda na ida pro salão, torceu o tornozelo e o local só inchava, inchava.

Voltamos pra casa com ela apoiada no meu braço, impossível pisar no chão, dor lancinante. Almoçamos e nada dela aceitar ir ao pronto-socorro.

– Tia, seu pé não vai melhorar até a hora do casamento, nós precisamos ver isso o quanto antes.

Relutante, ela acabou aceitando procurar assistência. O único carro, o único motorista, era o noivo. O Tony. Embarcamos no carango e lá fomos nós procurar atendimento. A Tia Zé também estava e testemunhou essa saga.

O primeiro hospital ao qual fomos não tinha pronto-socorro. O que tinha era longe, no campus da universidade, do lado de lá da ilha, caminho oposto ao da casa deles e ao da igreja onde teríamos que estar no fim da tarde. Corre-corre, ainda ficamos na fila do HPS algumas horas, ela quase tendo um troço de medo de não dar tempo, ele fingindo calma, mas nervoso como todo noivo deve estar quando vê a hora da cerimônia se aproximar e ele retido na fila do hospital com a mãe, e a gente lá, tentando acalmar os nervos.

Resumindo uma longa história: chegamos em casa a tempo do Tony vestir o terno e voar pra igreja enquanto nos aprontávamos, a Tia Quiquica de pé engessado e muleta, eu tentando dar a ela o suporte literalmente necessário pra ela conseguir até trocar de roupa. Bem que ela quis desistir de ir, mas a convencemos de que, depois de tudo, o filho entrar sozinho na igreja seria muito desapontamento. Fomos.

No dia seguinte, entrei num barco de turismo e, pela primeira vez, fiz aquele passeio em volta da ilha. O dia inteiro vendo de longe as maravilhas das praias que eu já conhecia e tanto amava, ao vento marinho, tirando fotos, relaxando depois de todo o estresse que envolveu o casamento do meu primo.

Voltei a Floripa pro enterro do Tio Pimentel, anos depois. Era a primeira vez em muitos anos em que todos os irmãos se encontravam. O do meio morava lá, o caçula em Brasília, o mais velho nos Estados Unidos. Era tanta saudade entre mãe e filhos, eu de penetra afetiva, que passamos a noite a dar risada, comendo, bebendo, contando casos e nos abraçando. Minha tia, com seu senso de humor e exagero únicos, comentava entre gargalhadas:

– Meu Deus do céu, os vizinhos vão achar que eu sou a viúva alegre! Kkkkkkkkkkkkkkk.

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Por fim, a última vez em que estive em Florianópolis foi numa daquelas viagens de bicicleta que fazia com os amigos. Saíramos de Joinville, levamos uns quatro dias pedalando, curtindo o litoral de Santa Catarina, comendo peixe, apreciando o povo e a paisagem que tanto marcaram minha vida, minha história, minhas memórias afetivas.