Meu pai dizia que, se você ainda não tivesse lido “Dom Quixote”, era uma pessoa de sorte porque ainda podia ler “Dom Quixote”. Isso aconteceu comigo agora. Tinha a sorte de ainda não ter lido “Manuelzão e Miguilim”, de Guimarães Rosa, o que me permitiu fazê-lo pela primeira vez. E me deliciar, como ocorre com tudo que vem desse meu autor predileto.

Quando a gente pensa que nada poderá ser melhor, acaba descobrindo que tudo de Rosa é sempre melhor. O livro (edição da Nova Fronteira) contém duas novelas, uma sobre cada um dos personagens que lhe dão nome. A primeira, sobre o menino desajustado no ambiente familiar e rural que lhe causa constante sofrimento e desassossego, possui momentos de pura magia, poesia e beleza que conduzem a lágrimas inevitáveis.

Como não se comover e chorar com Miguilim e seus irmãos, principalmente o Dito? Miguilim e Pai e Mãe. Miguilim e o Tio Terêz. E os cães, e os demais bichos, e os medos, e as dúvidas e incertezas que povoam a alminha sempre perdida daquele menino… Quanta beleza na estória (como prefere o autor), lavrada a palavras e imagens que marcam para sempre o coração do leitor.

Quando vem a estória de Manuelzão, o velho em contraposição ao menino, descobrimos que a escrita ainda pode ser mais elaborada, poética, rítmica, envolvente. Menos que os conflitos do “velho” (Manuelzão está na casa dos 50, nada próximo do verdadeiro idoso, o Velho Camilo, outro personagem robusto da novela), sobretudo é a descrição de sua festa que conduz a narrativa.

Manuelzão inaugura a Capela. Festa de três dias para o povo do lugar, e outros lugares, que se achega pra cantoria, reza, bebedeira, comilança e muita, muita estória pra contar. Pela Joana Xaviel ou pelo Velho Camilo, que fecha a narrativa com um conto de tirar o fôlego, sobre o Vaqueiro-Menino e o Boi Bonito.

Guimarães Rosa não é difícil, como reza a lenda. É poesia, ritmo, profundidade, linguagem ao mesmo tempo sofisticada e popular, de raiz, um mergulho na cultura e na beleza do nosso povo. Viva Guimarães Rosa!