Quando eu era pequena em Muriaé, meu tio gostava de enunciar o paradoxo da cidade onde todo mundo era mentiroso, mas quem dizia isso era daquela cidade, então o que ele dizia era mentira, então nem todo mundo era mentiroso, então podia ser verdade, mas se fosse verdade todo seria mentiroso naquela cidade…
Desde o título, “O Falso Mentiroso – Memórias” (Rocco, 224 páginas, R$ 30), de Silviano Santiago, é um exercício em torno desse paradoxo, em torno do falso e do verdadeiro. O próprio autor narrador distribui pistas por toda a narrativa, ao se dizer, não eu, mas “nós”, por poder ser um, dois, três, gêmeos, trigêmeos, quádruplos…
Filho adotivo de um casal que não podia ter os próprios filhos, Samuel suspeita que seja filho do pai com alguma amante. Mas pode não ser nada disso. E pode ser muita coisa que ele nem suspeita.
A vida de Samuel e de seu pai é feita de embustes e engodos. O pai fez fortuna tocando secretamente uma rentável indústria de camisinhas antes do advento da penicilina. Amargou a decadência e não viveu pra ver a era da Aids e a disseminação mundial da camisinha como prevenção a DST, gravidez e HIV. Antes de morrer, virou o carola que sempre fingira ser.
Já o filho tornou-se artista plástica, falsário, depois de se fingir estudante de arquitetura e de direito. Seu casamento com uma surda-muda é uma falácia, assim como os dois filhos…
Enfim, numa teia de memórias inventadas, Samuel poderia ter sido até mesmo Silviano Santiago… Numa literatura ácida, cínica, que questiona e contesta a esmo, vale mergulhar no universo hipócrita e burguês do Rio de Janeiro do século XX, com seus duplos falsos e verdadeiros…
Beijos!
Posts recomendadosVer Todos
Delicada e forte carpintaria literária
Diferentes emoções numa impressionante coleção de contos
Silêncio! Precisamos ouvir o canto da iara
Nas alturas escarpadas da estética
Falta de pensamento e de contato com a realidade, e a canalhice de sempre
Meu mais novo amigo de infância