A psicanalista Elisa Arreguy Maia, minha irmã, escreveu este texto para a orelha do Dicionário Amoroso da Nini:

Me dou conta de que tenho falado muitas e muitas expressões bem antigas, que minha mãe dizia que minha avó citava. Não as escolho, elas me vêm à boca num certo modo de arrematar as falas, de ilustrar ou mesmo de lustrar o pensamento. Talvez por conta disso me peguei fazendo umas contas malucas: minha avó nasceu em 1895, logo, as palavras e as expressões cotidianas, os ditos, os versos prediletos, as citações, as orações que se falavam na casa de minha avó me chegam de mais de cento e vinte anos atrás. A avó de minha avó teria legado a ela palavras de mais ou menos outros cento e vinte anos para trás, e assim por diante, tempo adentro. Além da história contada nos livros, recebemos palavras faladas, testemunhos vivos da língua materna.

O psicanalista Jacques Lacan forjou um modo de nomear a língua primeira, essa que o bebê ouve em casa desde a barriga da mãe, à língua carregada de afetos da mãe, da casa da mãe, ele chamou lalangue, “alíngua” em tradução literal, ou “lalíngua” como preferimos alguns. No substrato da memória inconsciente está lalíngua que volta e meia se atualiza nessas expressões verbais quesaem de nossas bocas, coloridas pelo tom e os gestos de nossos pais, carregadas com o grão de sua voz. O sentido das palavras, o rigor e a beleza dos versos e o próprio pensamento serão sempre embalados e carregados por esse amor de lalíngua.

Em nossa casa circulavam livros e música e palavras. Nossos pais gostavam delas e nos transmitiram seu gosto. Nossa mãe era atriz e escolheu se chamar Nini, o apelido de infância tornado nome artístico. Um nomezinho danado de sonoro, inesquecível. Ela cantava muito bem e nos ensinou a ouvir as vozes brasileiras que a tocavam.Por exemplo, ela me fazia prestar atenção ao canto e à bossa de Elza Soares, da Maysa, assim como amava Piaf e Aracy de Almeida, mesmo essas mulheres estando na contramão de sua rígida formação religiosa e seus preconceitos sociais. A arte se impunha e a Nini sempre foi artista. A própria palavra “bossa”, ela a compreendeu e nos fez notar como qualidade artística. E se nosso pai era o dono absoluto da poesia e do humor, ela nos transmitiu o canto, as vozes do Brasil.

As expressões que este livro recolhe rodavam na grande família de avós, tias e tios e primos e amigos e agregados. Mas nossa mãe as cultivava com fino humor, como se pode ler neste dicionário amoroso. Ela recebeu esse gosto da sua casa materna, mas as atualizava com bossa própria. E penso que ela fazia seu humor com os filhos e para os filhos, para estar a par com eles. Ia ouvindo o que dizíamos, como dizíamos, e se deixava capturar. Ela e sua ninhada faziam um mundo próprio. Nini. Agora, Clara Arreguy refaz aqui esse movimento como numa costura, a laçada para trás leva o trabalho à frente.

Um laço tecido de tempo, memória e amor subjaz na construção de uma casa, de um povo, de uma nação. Uma nação não é justamente esse conjunto de língua e território? Minha pátria é minha língua quando enseja um território de afetos. Dos ditados antigos, das expressões e máximas, nos chegavam o latim e o francês, mas também os restos dos saberes e ditos dos índios, dos negros e da história viva dos avós. Na língua que aqui se fala, o brasileiro, uma das expressões culturais que melhor traduzem e conduz esses restos dos tempos que as contas malucas buscam é, sem dúvida, a canção popular. Nossas canções traduzem, conduzem, fazem passar a nação possível. A canção brasileira reúne diferentes sob uma mesma alíngua de afetos, assim como, na canção, inventamos modos de tratar diferenças e conflitos e desenhamos horizontes. Assim, uma nação é a resultante, o efeito, da linhagem materna. Tal como este amoroso dicionário.

Elisa Arreguy Maia, psicanalista

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