Miriam mora em Brasília desde que deixou Belo Horizonte e, com a cidade, algumas desilusões amorosas. Não dirige automóvel, é petista, tem pouco mais de 40 anos e bom emprego. É assídua passageira de táxis e, por isso, conhece os motoristas e suas histórias. De pedaços de conversa que começam certamente por sua educação e caráter – ela gosta de gente e respeita os outros –, Miriam se torna uma boa ouvinte, entre confidente e psicanalista. Da primeira inclinação da alma, pulsa dela a confiança que desperta nos companheiros de pequenas corridas; do divã motorizado, a capacidade de fazer da conversa a inauguração de outra forma de entrega de segredos e sonhos.

Mas Brasília é mais que uma cidade, é uma espécie de destino. O tempo seco, que tira toda a umidade dos contatos para ir no nervo da vida, e a política que perpassa tudo, da paisagem das esplanadas aos interesses mais escondidos, cria um cenário único. E as pessoas que circulam nas ruas têm essas duas marcas em suas vidas. Os personagens de Tempo seco são gente que honra Brasília. Vivem no clima que parece sempre anunciar tragédias: céu claro, baixa umidade, a localização incerta entre a migração e a escolha de uma nova pátria. Sabem que a política habita o cotidiano e não fogem dela, afirmando paixões e tendo gosto em discutir.

Por trás de cada pessoa há uma boa história. O maior ensinamento da literatura é exatamente este: toda vida merece ser contada e, por dentro, há um abismo de motivos e pesadelos que iguala todos os filhos de Deus. Por isso, numa cidade de máscaras, o desafio de flagrar a vida real é ainda maior. Miriam e Rodrigues, seu motorista mais contumaz, têm muito em comum e não é um acaso o encontro dos dois. Na verdade, não há chance para sorte ou azar na vida das pessoas de Brasília. Elas buscam a cidade sabendo o que deixam e o que procuram. Que os sonhos desandem ou se realizem é um sinal de que a vida é que manda, e não as teorias.

Romance contemporâneo, de gente comum, que sabe que uma corrida de táxi é o caminho mais curto entre dois pontos, principalmente para quem não quer saber de ônibus cheio e sistema caótico de transporte público. Há um perfume de classe média que torna a narrativa ainda mais intensa e seca, como o clima. O mais moralista de nossos estamentos sociais vem aprendendo muito ultimamente. Sabe que não vai se tornar elite. Aprendeu a olhar para o lado e se reconhecer em quem acreditava inferior. É uma espécie de amadurecimento. Mesmo melancólico, o fim das ilusões é a única saída para quem não quer ficar parado no ponto.

A cidade é também território da violência, seja ela psicológica ou social. Às vezes as duas se juntam no mesmo trajeto. Os motoristas de táxi sabem muito bem disso. E os bons contadores de história também. Clara Arreguy conduz o leitor com profissionalismo pelo rumo mais direto do enredo, mas acha sempre um atalho para fazer um comentário, contar um caso, começar uma conversa que será entendida mais adiante. Tempo seco é um mapa de uma cidade que deu às ruas nomes de letras. E com elas escreve histórias de gente.

João Paulo é jornalista

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