@ Márcio Metzker

Quando recebi o livro “O Quarto Canal”, de Clara Arreguy, achei que seria uma avaliação jornalística do conteúdo das emissoras de sinal aberto, chamando atenção para uma delas. Ledo engano. Ao começar a ler, tive outra errônea impressão de que era um feixe daquelas crônicas com que Clara nos brinda com certa frequência. Ela relata, na primeira pessoa, seu pavor ao enfrentar um doloroso e caro tratamento dentário.

Foi aí que a prefaciadora Lucília Neves Delgado deu sinais de empacar. Eu não. Fui editor de uma revista científica de Odontologia, e estava familiarizado com aquela terminologia que Clara esmiúça com maestria sobre as mesiais, linguais, palatinas, oclusão, ATM, etc. Mas ao contrário dela, nunca tive curiosidade em saber o que meu dentista estava fazendo em minha boca. Quando ele perguntava quem tinha feito tal obturação no dente 13, eu respondia “sei lá, não tenho tanta intimidade assim com meus dentes pra saber o número deste”.

Só lá pelo terceiro capítulo fui me dar conta dos meus erros de julgamento, e percebi que se trata de um romance que começa autobiográfico mas se mescla com o alter-ego ficcional de uma professora dos bicudos tempos atuais.

O romance custa um pouco a engrenar, mas isso não é defeito. Alguém aí desistiu de ler “O Nome da Rosa” de Umberto Eco depois de vencer as primeiras 80 páginas? Se você estiver curioso(a) sobre o título desta resenha, saiba que é uma das pérolas literárias que Clara espalha pelo livro, sobre a broxante experiência de beijar uma pessoa que usa aparelho ortodôntico.

O que mais empolga em “O Quarto Canal” são as poderosas análises da subversão do conhecimento, da dura vida dos mestres nas escolas patrulhadas por alunos e pais estúpidos e fascistas. Para os alunos que insistem em filmar as aulas de Sociologia para acusar os professores de comunismo, a professora encontrou um belo desestímulo: as aulas que prepara são propriedade intelectual sua. Qualquer pessoa que resolver gravar tem que pagar por elas. Na Justiça.

Clara Arreguy usa um eficaz artifício dos escritores que escrevem na primeira pessoa: o de expor o flanco. Vai alternando admissões de fragilidade física com mostras de inexpugnável fortaleza política. Confessa sua pouca aptidão para os esportes e revela uma aguerrida disposição para lutar pelos avanços civilizatórios.

Cada um dos textos finais do livro é um sábio editorial contra o obscurantismo que ameaça o futuro do país cordial e avançado que estávamos construindo. E expede um alerta: se isso se agravar, não se salvarão nem as “tesourinhas” de acesso às superquadras de Brasília.

“O Quarto Canal” tem o charme suplementar de incluir uma versão em inglês de cabeça pra baixo. É um livro indicado para dentistas, professores, jornalistas, estudantes de mente aberta ao conhecimento e para qualquer pessoa que aprecie boa literatura. Só os fascistoides imbecis é que vão detestar.

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