Quando perceberam que a filharada já estava criada e dava conta de passar umas semanas sozinha em casa, meu pai e minha mãe fizeram duas excursões por uma empresa chamada Urbi et Orbi. Ambas de ônibus. A primeira, Norte e Nordeste, pelas principais capitais e pontos turísticos da Amazônia, andando de barco, percorrendo rios e se esbaldando na cultura e na culinária locais. A segunda, Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile. De ambas mandavam cartões, davam telefonemas, faziam ou estreitavam amizades. O diário deles na viagem ao Sul foi incluído como adendo ao Dicionário Amoroso da Nini, que publiquei no ano passado.

Inspirada por eles, também vivi meu momento CVC, no início dos anos 1990, num ano em que não tive tempo pra planejar as férias. Entrei numa excursão que saiu de ônibus de BH, percorreu o Sul do país, atravessou o Chuí, cruzou o Rio da Prata e me levou por terras argentinas, uruguaias e paraguaias, voltando depois pelo caminho inverso.

No começo senti vergonha, porque era nitidamente um programa de coroa. Noventa por cento dos ocupantes do ônibus eram casais aposentados. Os outros 10% éramos eu e mais duas moças, como eu, solteiras e sozinhas. Nos identificamos de cara, nos tornamos amigas de infância e curtimos o passeio a três, sempre com assuntos de namoros e risinhos.

Tudo girava em torno de um guia que rezava a cada partida e a cada chegada do ônibus. Recitava suas informações aprendidas no curso médio de Turismo. Inventava jogos e brincadeiras pra distrair as horas e mais horas dentro do busão. Era boa gente.

Hoje vejo que os coroas de então provavelmente eram mais jovens naquela época do que eu sou hoje. Quanto preconceito! A maioria era simpática, interessante, engraçada. Pra começo de conversa, encontrei no grupo os pais da Tininha, que havia sido minha colega no Centro Pedagógico. Ótimos companheiros de viagem, boa prosa, gente inteligente e culta, com quem podia falar dos livros que lia, de temas mais profundos.

Os casais em geral se mostravam discretos, mas havia um que chamava a atenção. Ela, tipo coroa enxuta, sacudida, em seus cinquenta e tantos anos, falante e fazedora de graça. Ele, um pouco mais velho em seus setenta e tais, caladão, cara séria, mas visivelmente apaixonado por ela e seu fã número um. Toda manhã eles entravam no ônibus, se sentavam lá na frente e ela se voltava pra trás, anunciando a plenos pulmões:

– Gente, eu tô tão feliz!!!!!!!!

Era a senha pra “confidenciar” uma vida sexual plena e realizada. Tinha dias em que não falava nada, induzindo algum gaiato a provocar:

– Ô, fulana, e hoje, você não está feliz?

E ela, cara de decepcionada, fazendo beicinho:

– Hoje não…

Na maior parte das vezes ela estava muito feliz, o que enchia seu coroão de orgulho pela masculinidade e atividade comprovadas publicamente, com recibo e papel passado.

O passeio em si foi dentro das expectativas. Curitiba eu já conhecia, Joinville não. Foi minha primeira vez numa cidade aonde voltaria muito, no futuro, e onde até hoje tenho grandes e queridos amigos. A Blumenau e Floripa também já tinha ido. Foi na capital catarinense que parei de comer carne vermelha em 1980. Faz 41 anos!

Depois vieram Torres e Porto Alegre, e enfim, o exterior. O Uruguai naquela época ainda não havia florescido como se deu mais recentemente. Era um país com população menor que Belo Horizonte, poucas atrações. Confesso que o que mais curti, como apaixonada por futebol, que sou, foi o Estádio Centenário de Montevidéu.

E chegamos a Buenos Aires, com seu pirulito igual ao da Praça Sete (foto), sua grandeza e sua mania de grandeza. Gostei da cidade, de La Boca, Caminito, a Calle Florida, a Casa Rosada, a Praça de Maio (outra paixão, a política, não poderia faltar, e as mães da Praça de Maio ainda procuravam notícias de seus filhos e netos desaparecidos pela ditadura militar).

Assistimos a um show de tango pra turistas, vimos e degustamos coisas lindas e gostosas. Numa tarde livre, resolvemos, eu e minhas duas companheiras, ir ao cinema. Foi aí que conhecemos melhor os portenhos. Dentro da sala, famílias inteiras, até com bebês de colo, mães amamentando, Coca Cola litrão, pizza a palito, conversa alta, o filme era o que menos interessava, uma bagunça tão grande que desmoronou ali a ideia de “europeus da América” que nos havia sido vendida. A gente tendia a rir deles, mas a cena serviu pra humanizar os argentinos aos meus olhos. Por essas e por outras, passei a gostar mais do país, a amar Maradona e Messi, até a torcer pra seleção deles, quando é o caso.

A excursão tem seu ponto culminante, no entanto, em Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, fronteira entre Brasil e Paraguai. Só então entendi tudo: a turma estava ali praquilo. Eles tinham enfrentado aquelas primeiras semanas apenas pra finalmente se abastecer no mercado livre paraguaio. Foram três dias estacionados ali, num ótimo hotel da cidade brasileira, enquanto o pessoal enchia malas e mais malas de muamba, em típico programa sacoleiro.

Eu, que nunca fui chegada em compras, atravessei a fronteira, conheci mais um país, me cobri da terra vermelhas das ruas da cidade, talvez tenha adquirido uma lembrancinha, não me recordo. Entendi que esse tipo de viagem te permite consumir rapidamente as atrações turísticas dos lugares e nada mais. A gente, as pessoas, a alma, passam longe.

Fiquei os três dias de folga na piscina do hotel. Lendo, tomando sol e descansando daquela maratona consumista.

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