Nos meus trinta anos de jornalista, fiz muitas viagens a trabalho. Os códigos de ética dos veículos sempre discutiram se seria ou não válido viajar a convite da fonte. O ideal era que cada viagem fosse custeada pelo próprio veículo, mas a realidade nem sempre era capaz de sustentar isso, de modo que, na minha vida profissional inteira, viajei a convite. Na área de cultura, quantos espetáculos, entrevistas, eventos a gente só podia acompanhar e trazer pro leitor se atendesse aos chamados dos produtores e promotores? Quantos artistas brasileiros e estrangeiros pude entrevistar desse modo! Anthony Quinn, Jean Claude Van Damme, o Ballet Bolshoi, Jimmi Page e Robert Plant, Roberto Carlos, Chico Buarque, Gilberto Gil, Fernanda Montenegro, Bibi Ferreira, elencos inteiros de novelas, filmes e peças teatrais…
Voltando às viagens, houve algumas que fiz a trabalho que se tornaram também grandes experiências de vida. Teve a vez em que fui à Flórida a convite da Directv, que estava pondo em órbita seu primeiro satélite e levou um grupo de jornalistas brasileiros pra acompanhar ao vivo e presencialmente o lançamento do foguete em Cabo Canaveral. Era um sonho de criança que viveu nos anos 60, durante a corrida espacial, me sentar naquela arquibancada, binóculo colado nos óculos, e ver o foguete ser disparado, com toda pompa, barulho e fumaça, rumo ao infinito azul.
A viagem teve mais elementos turísticos em Orlando, nos parques temáticos, que acabei curtindo, embora esses não fossem meus sonhos nem de criança nem de adulta. Muitos brindes, também, o que me constrangeu, a ponto de chegar à redação do jornal e sair distribuindo camisas, camisetas, presentinhos, souvenires sem fim. Só retive mesmo o binoclinho, lembrança do meu encontro com um foguete de verdade.
Outra viagem a trabalho memorável foi ao México. A indústria hoteleira de Puerto Vallarta, destino até então restrito a aposentados norte-americanos e canadenses, resolveu atrair os ricos do Brasil, por isso convidou a imprensa daqui pra ir lá desfrutar suas maravilhas.
Começamos o périplo pela Cidade do México. Foi sensacional conhecer uma das maiores megalópoles do continente, com um incrível museu dedicado às culturas originárias, encravado num parque urbano deslumbrante. De quebra, ali perto, as ruínas de Teotihuacan, onde floresceu e feneceu a civilização asteca, as imensas pirâmides do sol (foto) e da lua. Minhas retinas jamais se esquecerão da paisagem contemplada do alto daqueles monumentos milenares erguidos pelo gênio um dia exterminado pela estupidez de uma cultura mais forte em armas e munições. Melhor dizendo, erguidos pelos braços escravos de um gênio.
Depois foi a vez de visitar Guadalajara, cidade especial pra nós, brasileiros, pela passagem da Seleção de 70 por ali. Até estátua de Pelé tem em praça da cidade. Passamos horas no estádio El Jalisco, onde foi disputada a primeira fase da Copa do Mundo naquele ano. O então diretor do estádio havia jogado na seleção mexicana naquela ocasião e nos contou uma porção de histórias. Não resisti a tirar uma foto no gramado histórico, diante do gol onde pontificou Félix, o goleiro tricampeão.
A última etapa da viagem, em Puerto Vallarta propriamente dita, foi uma competição entre hotéis seis estrelas pra ver quem nos mimava mais. Era dormir num hotel, tomar café da manhã em outro, almoçar num terceiro, e por aí afora. Tudo com direito a brindes e mais brindes, que, mais uma vez, distribuí na redação. Comidas deliciosas, colchões e travesseiros de contos de fadas, tratamento vip, tudo isso nos mostrou que o discreto charme da burguesia é apenas um detalhe no imenso fosso da desigualdade social. Não se destina ao comum dos mortais e, pelo jeito, nunca será pro nosso bico.
Fui a Cuba duas vezes. Uma, sozinha, a passeio, e a outra, pelo jornal, pra fazer matéria. As diferenças foram maiores porque, entre uma viagem e outra, o país se abrira ao capital estrangeiro e seu imenso patrimônio histórico, que da primeira vez estava caindo aos pedaços, da segunda havia começado a receber recursos pra restauração. Detalhe fundamental: abrir-se ao capital estrangeiro não era vender a alma pro capeta por um punhado de dólares. As empresas que faziam parcerias com Cuba nunca detinham mais que 49% do capital. Portanto, não mandavam no país, que dava oportunidade pra chineses, nórdicos e espanhóis ganharem ali, desde que os cubanos ganhassem mais e dessem a palavra final.
Nessa viagem a trabalho, formamos um grupo eu, o Jorge, também de Brasília, o Lode, belga, e uma jornalista portuguesa cujo nome me esqueci. Os quatro andávamos juntos pra todo lado, assistimos aos shows pra turistas, às apresentações da cultura local, muito parecida com a nossa em termos de origens plurais – indígenas, negros escravizados, europeus – e experimentamos a culinária da Ilha. Foi rico em informações e divertido, como devem ser as viagens a trabalho.
No último dia em Havana, tive que me separar do grupo pra cumprir uma tarefa chata e desafiadora, que me encheu de medo. A pedido de dois dos meus chefes, eu devia levar pra eles o charuto cubano legítimo, que não era vendido abertamente, mas num mercado negro supostamente proibido pelo governo. Tive que me imbuir do espírito de gângster dos filmes que tanto aprecio pra abordar um cara na rua e perguntar a ele como fazia pra adquirir as tais caixas de charuto.
– Sigueme, disse o rapaz, olhando pra um lado e pro outro.
E lá fui eu, entra em viela, vira à esquerda, vira à direita, desemboca em viela ainda mais estreita, a praça repleta de estrangeiros ficando pra trás, a paisagem se restringindo a gente de bermuda e chinelo, paredes descascadas, olhares de suspeição sobre mim. Entramos num casarão meio escuro.
– Sientate.
Sentei, já com as pernas meio trêmulas. Dali a pouco vem o cara com as caixas, as abre e me mostra que era aquilo mesmo que eu queria. Pago os dólares combinados. Saio. Ele me ensina a retornar ao ponto de partida.
O coração só voltou ao compasso normal quanto entrei no hotel e enfiei o produto na mala. E, ao entregar as encomendas aos chefes, jurei nunca mais buscar muamba pra ninguém.
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