Prefácio escrito pelo poeta e professor Orlando Fonseca para o livro Coisarada, que reúne a poesia do fotógrafo Paulo de Araújo:
Do Paulo, primeiro conheci o poeta, diletante, primeiros versos, procurando caminhos na vida e na arte. Depois o fotógrafo, mirando a objetiva para o mundo, desde o Planalto Central. Desde sempre, a procura da permanência pela imagem. Se não construída à base de luz, sensibilização química ou digital, construída pelo arranjo inusitado das palavras, em um processo de reciclagem da língua e da percepção do mundo. Em qualquer dos casos, a base é a sensibilidade aflorada, a sensibilidade educada – nada a ver com bons ou maus modos, mas no sentido da doma, do treino, do exercício contínuo e perseverante.
O poeta Paulo de Araújo nos brinda com sua obra em um projeto de figurar o que há, como se apontando uma câmera: “por esse espaço/ etéreo chamado/ existência/ existindo”. Reúne nesta coletânea de poemas como que as confissões de um adolescente, naquele sentido consagrado pelo cartum do Feiffer, em que no último quadrinho sentencia: “a adolescência é para toda a vida”. Ao dividir a seleção em Primeira, Segunda e Terceira Adolescência, permite-nos a ilação de que fala de uma existência inteira. Mesmo que não pressuponha – por ainda estar falando dela, não como inventário último – a existência toda, aponta-nos as possibilidades de um viver íntegro, total, pleno.
De suas palavras, em versos, estrofes, rimas e figurações, a tradução possível é de que poetar é dar sentido ao percurso. Para o poeta, o verso bordado, ao olhar da tia, tecido ao acaso, sustenta uma celebração do labor, como um programa estético e vivencial contra o suicídio, a desimportância e a inatividade. É, acima de tudo, o compromisso de só esbarrar na Morte – assim, como letra maiúscula, com nome próprio – depois de sintetizar o verbo viver no aprendizado de “traduzir o canto/ dos pássaros,/ apreender os aromas/ (…) e rescender a flor”. Nesse processo, o lúdico se faz em um desafio de exercer “a vida/ na pura/ idolatria/ do viver”, e ainda que isso nos traga o fel, é a proposta do poeta para sermos “desagradáveis/ com o/ carrasco”.
Pôr-se em movimento, seja da consciência, seja do afeto, produz a urgência na “ilusão da trajetória” – “urge viver/ intensamente”: enquanto suportar o velho sapato gasto e o andar já se fizer trôpego, é a crença na exiguidade do tempo aquilo que “refaz a certeza/ de que somos/ mortais”. Viver assim de recolher as imagens da existência, sua ou de todos, pois na poesia ser é compartilhar o tempo, tudo pode ser tanto encanto como também castigo, pois “por muito/ que eu ande/ de mim/ eu não me desligo”. Afirmar-se, de todo modo, é manter a dinâmica do caminho, o que pode ser perda ou autoconhecimento. E a sua receita de vida e fazer artístico sintetiza na estrofe: “Misture o/ verso/ e condense/ a vida”.
Paulo nos apresenta um trabalho delicado e bem elaborado para surpreender o leitor, pois, como afirma na aliteração, as leis são três: “Bulir/ Burlar/ Burilar”. Em seus poemas encontramos composições e arranjos felizes da linguagem poética, a partir dos elementos triviais do cotidiano: “Onde o rio/ Descasca suas margens”; “estranhas entranhas”; “Por entre/ grades,/ muradas/ e guaridas”. São achados literários que vão além da forma, que provocam reflexões pelo inusitado, como “andorinhas andarilhas” – o paradoxo de ter asas e andar, ou de usar as asas para andar. No uso do recurso da paronomásia, “de abril/ abriu?/ abrirá?/ abrir-se-ão?/ abril se ia”, em que a forma trocadilhesca aponta a condição do brasileiro. Contradições desconcertantes da vida: “navego/ divago” numa “imprecisão quilométrica”; ou em “Alivio/ as dores/ noturnas/ contando/ estrelas/ diárias”. A prática do verso como viver “dúbio/ Verso, contraverso” e suas antíteses. Rimas que reduzem em linguagem uma constatação ôntica: “Eu só sei/ do meio/ Do anseio/”. Poética como verdade: “verdades/ escondidas atrás/ de cada/ palavra esmagada/ contra o/ silêncio”.
O sexagenário poeta-fotógrafo ou o fotógrafo-poeta entrega-nos este álbum em que pretende figurar o outrora e o futuro. Desenho do que é possível perceber na existência, pois, no dizer de Santo Agostinho, só o passado é real, pois o futuro ainda não existe e o presente só se revela sendo passado. Carece ao poeta inventar o futuro, pois “quer tudo ao mesmo tempo agora”. Para isso nos apresenta retratos como o poema no qual flerta com a Canção do Exílio, para celebrar o presente. Ou um poema que mistura a saudade e a solidão de Brasília com os fatos políticos da atualidade. Não é um canto triste nem uma fotografia para ilustrar manchetes do jornal, pois o poeta não é de se acomodar ao rés do chão: “Voar é/ o que/ me resta”. No entanto, isso não significa ir-se na solidão, senão com a companhia do afeto, jornada para a qual também pode
sonho, festa e fantasia
é pra onde
quero ir contigo
e sem volta.
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