O quarto canal, de Clara Arreguy: 
um misto de alívio e suplício, utopia e distopia; 
um tributo à educação

– Por Maria Amélia Elói

Quando Clara Arreguy anunciou que lançaria romance novo, intitulado O quarto canal, versão bilíngue Português-Inglês, por sua própria editora, a Outubro Edições (outubroedicoes.com.br), logo fiquei interessada em conhecer a história. Imaginei que encontraria naquele universo narrativo algum tipo de consolo anestésico ou ensinamento cirúrgico. Isso porque, em 2020, em plena pandemia, vim finalmente a experimentar o tal tratamento de canal, não só uma, mas duas vezes, após episódios de dor de dente — eu, que até então só conhecia as habituais limpezas, pequenas obturações, a plaquinha noturna de acrílico e os aparelhos ortodônticos da infância e da juventude.

Quem me deu o livro foi a escritora Flávia Ribas, numa brincadeira de amigo oculto do Instituto Casa de Autores (casadeautores.com.br), em dezembro, e só agora tive a chance de me deitar na cadeira do dentista com a querida protagonista, Fabrícia. Terminada a agradável leitura, posso garantir: aprendi muito, não só sobre higidez bucal, mas principalmente sobre comportamentos de má-fé entre profissionais da saúde, sobre dores íntimas e coletivas, físicas e psicológicas, sobre afetos, esperanças, perdas, sobre democracia, sobre desigualdades sociais, preconceitos, sobre o Brasil pós-golpe de 2016, o absurdo instaurado com a eleição da extrema-direita e a falta de perspectivas de futuro do povo.

Usando uma escrita clara e franca, sem rodeios, com seu mineirês brasiliense, Clara Arreguy construiu uma heroína convincente: idealista e (ainda bem) humana e imperfeita, com dores de dente, com dores de gente. Por meio da opinião, da fala e da atitude da professora Fabrícia, a romancista consegue expressar suas próprias preocupações e urgências — e, confesso, assim contempla muitas das minhas necessidades também.

Vale destacar, como temas do livro: o amor à educação e aos educadores, a atenção aos desfavorecidos, a celebração das memórias da família, o respeito à ancestralidade (assim como em Estrelas de pés no chão, que Clara publicou em 2018), a importância do feminismo em seus vários aspectos, os problemas da uberização das relações de trabalho, os perigos do fanatismo religioso e do negacionismo científico, o fantasma da ditadura, a busca da autoestima e do desejo sexual (a propósito, já leu os contos eróticos Mia Shy, em Bad Girl e outras histórias?) e, principalmente, as angústias do envelhecimento e as incertezas da vida (“Oncotô, proncovô?”).

Os capítulos curtos do romance funcionam como pequenas crônicas, com pinceladas sensíveis de histórias vividas no dia a dia — algumas muito leves e jocosas, outras mais sérias, políticas, filosóficas. Em O quarto canal, ora encontramos um texto beirando a alívio utópico, que nos sopra uma brisa de paz e alegria, ora uma distopia-suplício muito real que nos aterroriza (enquanto pacientes à espera de tratamento e cura, enquanto mulheres carentes de amor, enquanto professores totalmente desvalorizados, enquanto brasilienses sem ipês, trabalhadores, desempregados, enquanto cidadãos brasileiros na terceira década do século XXI, enquanto caminhantes diante do precipício).

Quando Fabrícia narra, em primeira pessoa, as desventuras vividas com o idiota do namorado Otoni e os belos momentos de aprendizado com o pai e com as avós; quando ela ensina (aos alunos e aos leitores) um pouco de ciência, literatura, ecologia e sociologia; quando aprende palavras em novos idiomas com o namorado poliglota Nassim Nadim; quando conta as histórias vivenciadas nas escolas onde trabalhou, em Belo Horizonte e em Brasília; quando fala sobre os consultórios odontológicos que frequentou amiúde; a personagem vai se tornando uma amiga nossa de luta, alguém de carne, osso e gengiva, com quem gostaríamos de conviver e com quem gostaríamos de compartilhar um café, um sorvete, uma pomada de própolis original itabirana.

Destaco, abaixo, um dos trechos que me emocionaram (págs. 70 e 71). Vale como homenagem a todos os professores (a Marcos Fabrício Lopes da Silva e a Lucília de Almeida Neves Delgado, por exemplo, que escreveram, respectivamente, a orelha e o prefácio do romance) e, em especial, à minha querida mãe, Lenir Amaral, e ao meu saudoso pai, Mauro Elói, educadores dedicados em sala de aula e em casa e que transformaram muitas vidas.

“— Fabi, a missão do professor é árdua, mas muito gratificante. Um aluno que você salva vale uma vida. Um bom profissional que você encontra, anos depois, e te diz “fui seu aluno, obrigado por tudo que me ensinou” vale cada dia debruçado sobre esses trabalhos todos que você me vê manusear, aqui, noite após noite.

Não era pena que eu sentia. Era um sentimento diferente, do qual, na época, ainda não sabia o nome: empatia. Vislumbrava, ali, o meu futuro, pois, ao olhar pra frente, não me via fazendo outra coisa senão tentando salvar uma vida que fosse pra salvar a minha.

E ele também se divertia lendo, estudando, ensinando. Se não estivesse na escola, exercia seu ofício comigo, em casa, com minha avó, com os amigos na roda do boteco. Os casos que contava nada mais eram que aulas, bem dadas e divertidas, sobre história, geografia, filosofia. Porque não perdia uma chance de conferir inteligência e sabor ao saber.

Ô, meu velho, quando você morreu eu deveria ter perdido os vinte e oito dentes da boca. Porque você foi o alimento da minha alma, o farol que me guiou nas noites de dúvida e medo. Mesmo depois que se foi, nunca deixei de me perguntar: o que o meu velho faria nesta situação? A resposta que ele me der, soprada pelo vento da lembrança, é sempre a melhor escolha.”

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